Na data comemorativa dos 200 anos da independência do Brasil, o país pensante testemunhou estarrecido, pela milésima vez, um espetáculo de ópera-bufa real.
O Big Brother palaciano produziu cenas aberrantes que nenhum comediante ousaria encenar. Como disse o humorista Gregório Duvivier em data próxima ao 7 de setembro, não há mais como fazer graça diante de tanta desgraça e competição injusta. São tempos que desafiam o humor e desafiam também filósofos, historiadores, cientistas sociais, psicanalistas e jornalistas sérios.
Numa descrição fria, atos de verdade fizeram parte da narrativa mirabolante e hiperbólica do governo de Jair Messias Bolsonaro, eleito pela Coligação Brasil Acima de Tudo, Deus Acima de Todos (PSL-PRTB), em 2018, para a Presidência da República com 57.797.847, representando 55,13% dos votos válidos. Após quatro anos do mais desastroso governo de toda a história brasileira, este fenômeno mantém cerca de 30 milhões de eleitores dispostos a repetir sua decisão anterior, a despeito de tudo o que não se precisa repetir e ressaltar aqui porque é mais do que conhecido daqueles que porventura lerão esse texto.
O objetivo deste escrito é arriscar algumas análises, superficiais ou pontuais que sejam, para penetrar na obscura perplexidade que os dados vivos nos fornecem. Para proceder a esse ensaio, tomo algumas noções presentes no senso comum, dado que nenhuma teoria parece apresentar, em minha perspectiva do momento, conceitos que possam articular uma explicação satisfatória dos eventos que conformam o processo em análise.
O espelho
Não há a menor dúvida que existe um movimento identitário que articula o grosseiro como imago de uma parcela da população em subgrupos de grupos, ou extratos, sob a batuta de classe, claro, em seu movimento autodestrutivo diriam os mais otimistas, ou em uma das suas mais severas crises, pois o capital financeiro é por si completamente contraditório, tendendo para a destruição dos objetos que intenta possuir.
Talvez essa autoimagem tenha surgido num ato de “rebeldia” contra o “politicamente correto”, o sensato, a transparência. Por meio de certos procedimentos e recursos, levados ao exagero supremo, a mediocridade se instaura com auto coroamento. O que isso quer dizer? Que no início, havia uma tentativa, bem-sucedida entre os medíocres, de encenar como graça, aquilo que deveria ser motivo de vergonha. Creio que poderíamos categorizar como especular essa atividade de cristalização do grotesco, tão caro à alma brasileira, que sai do âmago do inconsciente coletivo, do desejo de gozar indefinidamente, do outro, e se instaura como real que finge ser piada.
É um real desconcertante que desloca o sarcasmo, a acidez de qualquer crítica com pretensão de intelectualidade séria. Não há como apontar a nudez de quem se sabe nu e diz: e daí? Não sou coveiro!
Desse modo, a cena nacional se defronta no cotidiano letrado e in(com)formado como um desfile de personagens e dramas saídos de um livro de Nelson Rodrigues, repletos de emocionalidades. Inveja, ciúmes, infantilidades, tudo junto e misturado numa estética de Escolinha do Professor Raimundo. Escracho herdado da chanchada sem qualquer sombra de ingenuidade, poesia e elegância. Pois, a chanchada degenerou em pornochanchada, muito cara ao público masculino de classe média, tendo sido reciclada para classe operária, por meio da Praça da Alegria, em movimentos sucessivos de reaproveitamento cultural-ideológico e esvaziamento de pudores, culminando com o Casseta e Planeta, apropriado para a classe média-alta e substituído pelo Zorra Total. Nesse novo movimento totalizante que opera o achatamento de plateias, colocando o humor numa linha cognitiva basal e gosto primário, no sentido de uso do que seria um arquétipo de bobo da corte, se quisermos usar Jung, o espelho vai distorcendo de tal modo os estereótipos distintivos (o gordo, o pobre, o gay), que eles passam a ser assimilados ao outro que se deve odiar como um mandamento: odiarás o próximo como a ti mesmo.
O público privada
O jogo produz inversões e deslocamentos, reduções. A privada, local mais íntimo de um ser humano “civilizado”, torna-se pública, enquanto o privado vira um leito de hospital, onde deve-se suportar o sofrimento sem qualquer expressão de dor: calado e cooperativo.
Uma metáfora cinematográfica nada sofisticada, aquela em que a merda da elite se apodera do prédio do Congresso Nacional, metáfora de outras metáforas, de outros filmes e comédias hollywoodianas, se espalha como projeto alquímico da extrema direita estadunidense, patroa idealizada dos pobres meninos ricos de Chicago, da FGV e de outros aparelhos reprodutores e perpetuadores da pobreza alheia, que não deixa de ser projeção da sua própria pobreza cognitiva e moral.
Então, aquilo que era palhaçada do tiozinho em dias de domingo, exposição educativa do âmbito privado que oferecia escape identitário, espelho distorcido, em um circo particular, transforma-se rapidamente, como avalanche trágica que sepulta lares inteiros, em cena pública internacional. E um país inteiro vira deboche, vira desprezo, pátria-pária sequestrada, diriam alguns, onde uma reconciliação vai se tornando impossível a cada passo.
Se o coletivo fosse uma unidade organizacional como as teorias administrativas pregam, estaria em surto psicótico severo; dissociada, negativista, delirante, empobrecida, embotada, desorientada, violenta, automutilatória, alucinada. Dizem os especialistas da mente, entretanto, que até nos casos aparentemente mais graves, algo de saudável persiste, cabendo ao cuidador tentar ativá-lo. Eles também dizem que, quando as defesas mentais extrapolam a capacidade de defesa psíquica, o corpo é chamado a sofrer as dores e se dilacerar em solidariedade. A somatização é a defesa mais primária e corta na própria carne, podemos dizer assim, para salvar o todo.
A força-armada
As defesas são sempre autodefesas, mesmo quando se dirigem aos outros. Mesmo, portanto, quando é defesa do vulnerável, pois o vulnerável do outro é nossa vulnerabilidade projetada externamente contra um inimigo real ou imaginário (eu mesmo que me faço outro).
As FFAA (Forças Armadas Brasileiras) fizeram pactos de sobrevivência cortando na carne, no momento da redemocratização que nada mais foi do que uma soltura com tornozeleira eletrônica, uma abertura programada a partir de comandos externos, que incitaram o nascimento de comandos internos aptos a preencher os vazios de Estado, onde a lei nunca favoreceu os mais fracos, pelo contrário. Por isso, FFAA e PCC (Primeiro Comando da Capital) são dois lados da mesma moeda: a força bruta.
Mas, quando o lado legalizado e “respeitável” dessa moeda se torna irrespeitável, o que acontece? O que acontece quando a brochura particular se transforma em quadro público que exalta o fracasso de um povo em se autorrespeitar e amar? O que pode acontecer quando o esforço de achatar nosso mundo encontra ressonância nos desejos mais abjetos e incontroláveis dos sinhozinhos e suas maltas que se abrigam no “civilizado” que é pura perversão?
Estas são questões difíceis para os não-magos, os que não jogam com as peças do campo mágico e insistem em dissecar a existência com as armas da racionalidade, positivista que seja, ou desconstrutiva, reconstrutiva, pragmática, crítica, inter ou trans qualquer coisa com assento nos cinco sentidos com toda sua subjetividade organizadora e controladora, lógica e coerente, bonita.
A dificuldade é desafio contra a angústia da incerteza quando o antagônico ameaça com suas práticas desonestas. Nossos cálculos são tão complexos quanto imponderáveis, incalculáveis, porque lutamos contra nós mesmos, numa luta insana, com as armas de Jorge, medievais, portanto, somos contra a monarquia, mas vivemos monarquicamente presos aos símbolos que desprezamos, aos valores que desejamos mudar. A luta, desse modo, se fraciona, nos deixando cada vez mais fracos, mesmo quando parecemos fortes com nossas armaduras de séculos atrás. Estranhamos nossos opositores como estranhamos a nós mesmos e um emaranhado de des-gosto nos faz esmorecer.
É muito difícil comemorar uma interdependência que custamos muito a reconhecer. Uma amálgama que é puro estranhamento e aversão. Como se reconciliar com um Moro, um Cunha, um Temer, uma Regina Duarte? Não falo dos indivíduos reais, nem os conheço, graças a Deus. Falo do Moro, do Temer e da Duarte que transitam cinicamente por nossos espaços familiares, nossas redes, nossos trabalhos, com os quais domos obrigados a conviver para manter os laços sociais, ainda que sejam laços que nos asfixiam. A pobreza é real, mas está distante da grande maioria dos que têm acesso à internet de banda larga e conseguem manter uma dieta com carne, manteiga e leite nas refeições diárias. A luta contra a pobreza se exercita num plano “ideal”, idealizado, identitário, abstrato, para quem não a vive na carne trêmula, encrostada, endurecida. Ou não a vive mais. Falando-se de modo generalizado. Já o esforço de um sorriso amarelo, um beijo numa boca suja, o olhar calado que grita indignação, esse cobra um alto preço em qualquer cotidiano.
Há que ser casca grossa para aguentar calado os gritos de alguém, seja quem for.
Talvez já esteja evidente para alguns que, para “penetrar na obscura perplexidade que os dados vivos nos fornecem” eu tive que utilizar-me de alegorias, como recorremos a lanternas quando nos arriscamos na penumbra das cavernas. Tanto a falta de luz, quanto o excesso impossibilitam nossa visão. Os governos pós-golpe têm usado e abusado dos excessos que nos embaralham e cegam, forjando inércias ou impulsos desordenados, muito longe das nossas capacidades mais racionais-estratégicas. Não somos os únicos na história das sociedades modernas ou pós-modernas, do Sul ou do Norte. Decifrar cenários e quebrar cabeças buscando compreensão potente que guie certas ações, por si só, não mexe nas vontades. Para conhecer é preciso querer conhecer, assim como mudar, exige vontade de mudança. Fora disso, o que existe é o aleatório dos movimentos indeterminados (ou estruturalmente determinados) que nos alcança de calças curtas, como crianças indefesas.
Para uma realidade hiperbolizada e anabolizada, um texto hiper figurado e anacrônico. Ou você pensou que eu sou a força? Lula traz em si uma qualidade rara que é essa capacidade de articular os três registros: real, simbólico, imaginário. Como todo herói, o mito sustenta o homem que mobiliza o mito. Essa é sua força. Nossa força é acreditar no mito. Cada um com seu mito. Cada mito com sua conexão especial com aquele que representa suas esperanças e anseios, sejam magnânimas ou rasteiras.
Esse é nosso momento de reativação da força mítica que nos move contra a tirania desde o momento inaugural enquanto nação. Nosso mito não é o “Fico”, mas a fusão de vontades, raças e destinos. Está no caboclo que encarna o santo Jorge e luta contra o dragão. Está na cabocla, que pode ser santa, amante ou travestida, heroína que abre caminhos e aleita, protege, sara. Está na saga nordestina contra a seca e a violência dos coronéis. Está na Anita. Sintomático é que pouco se fale desta última: Ana Maria de Jesus Ribeiro da Silva.
O luto da Globo
Na esteira do nosso luto pela perda da pátria, da bandeira, do feriado, eis que um outro luto inusitado se instaura: o do governo Bolsonaro pela morte da rainha (três dias oficiais) e, com ele, o luto da rede Globo. Repórteres e apresentadores passam a desfilar de preto, pela telinha. Isso mesmo. No dia mundial de prevenção ao suicídio, em vez de amarelo, os jornalistas vestem preto, mais súditos que os súditos de Elizabeth. Quando algo desse tipo acontece, as bocas se calam. Nada mais há o que tentar explicar. Por esse motivo, fecho minha prosa por aqui e deixo para outros a busca de qualquer chama, qualquer clarão que nos tire dessa obscuridade perplexa. Ou melhor, chega de buscar razoabilidade e vamos para a ação.
Dra.Tereza Cristina Coelho. PhD em Saúde Coletiva.
Prof. da UEFS. Academia de Medicina de Feira de Santana
Tempos difíceis e que, certamente, marcarão nossa história. Sinto-me acolhido por pessoas e pensamentos que escolheram o lado certo em vez do lodo mito!
Excelente texto. A apropriação das datas e dos símbolos nacionais em prol de um governo de retrocesso civilizatório precisa mesmo de análises como essa. Precisamos entender para impedir que se repita. A boa notícia é que aparentemente não teve efeito nas intenções de voto. Lula continua na liderança e a perspectiva de vitória no primeiro turno não está descartada.