Eu negro, tu negas!

Subi a ladeira íngreme que dava acesso ao centro histórico de Penedo, cidade encrustada em terras alagoanas próximo à foz do Rio São Francisco. O sol de verão refletido nas águas cálidas do Velho Chico queimava-me a testa exposta. À nossa frente uma igreja em estilo barroco dominava todo o paço, àquela hora vazio, silencioso. Andei um pouco pelo centro histórico. Soubera que havia um museu, ponto turístico importante local e, andando inseguro sobre a rua estreita feita de pedras lisas, deparei com uma casa sem eira nem beira, portas estreitas de madeira pintada em azul. De dentro dela saiu um jovem negro que se apresentou como guia e me convidou para entrar. E entrando deparei-me com imagens nunca vistas e com sensações nunca antes sentidas.
Os olhos pouco a pouco saíram da luz do verão nordestino, foram se acostumando com a sala meio que na penumbra, cheia de desenhos, de retratos, correntes, marcadores de ferro com insígnias, cruzes, algemas!
Estávamos no interior do Museu da Escravidão em pleno interior das Alagoas, zona próxima da cultura da cana do açúcar.
Arrepios percorreram meu corpo, uma gargantilha de ferro parecia apertar-me o pescoço e eu não tinha voz.

…
Minha avó paterna, quando na minha infância, sempre me falava sobre isso dizendo; “meu pai tinha escravos”, “eu tinha uns oito anos quando a princesa mandou soltar os escravos”! “ Eles saíram correndo pra todos os lados “! “

” O que poderá saber um animal para aonde vai?”(1).

Na árvore genealógica da minha família não se sabe se ocorrera uma mistura de raças. De brancos com negros, de brancos com povos originários, mas, posso afiançar que minha avó com sua tez morena, com seus cabelos pretos e olhos mais claros, testemunhavam a miscigenação comum da nossa formação, portanto creio, uma ascendência multirracial.

Em dado momento o jovem guia do museu me mostrou um retrato de um negro banto. Trazia uma cruz lhe marcando a testa, destacando-a sobre e entre os olhos . Aquela imagem à minha frente era a representação da escravatura levada a efeito pela igreja católica, responsável também por parte do escravismo brasileiro, desde a “catequese” dos índios desde o século XVI, até a propriedade de escravos negros, “ dos Santos” aí entendido como Sanctorum, aqueles originados no Dia de Todos os Santos.

Aquela imagem nunca mais me saiu da cabeça, os arrepios que correram pelas pernas e braços do meu corpo franzino. Naquele instante imaginava gotas de sangue correndo entre os meus olhos, e ardia e ardia e latejava as têmporas. O ar rarefeito me apertava o peito, a garganta. “o mormaço ocupa o espaço do ar para se respirar”(2). Não conseguia mais permanecer naquela minúscula representação de um silencioso holocausto tupiniquim. Não lembro sequer do que disse ao me despedir do jovem guia, ficou lá como testemunha viva do que estava ali entranhado.
Sai, e o sol já de início da tarde nem me queimava tanto a fronte. ” O sol escaldante queima o olhar” (3), tinha os olhos marejados para sempre!

Hoje 20 de novembro é um dia para lembrar. Comemora-se o Dia da Consciência Negra. Dia pra não esquecer dos horrores da escravatura, sobretudo em nosso pais. Os outros 364 dias do ano são os dias para que continuemos a lutar contra essa chaga chamado racismo, racismo que é base estrutural de quase todas as mazelas sociais que ainda convivemos.
La atrás, percorro os olhos marejados ante a visão dos meus bisavós, tataravós, possivelmente negros, possivelmente mestiços e lhes agradeço pela força, pela resistência ao sofrimento, que permitiram que eu acontecesse e que hoje eu aqui esteja.

Wagner Bomfim
20/11/2022

• (1, 2,3 ) Graciliano Ramos in Vidas Secas.