Os trilhos da vida
Essa é uma pequena crônica, na primeira pessoa do singular, como singular pessoa que sou no trato com as coisas simples da vida.
Tinha eu uns dez anos, creio, não havia descoberto ainda as curvas da vida, sobretudo as curvas que os corpos femininos impunham aos dias e noites que a adolescência viria impor.
O meu avô era um servidor público da antiga Viação Férrea Federal Leste Brasileira, onde começou desde cedo na vida, na lida com a sinalização e trânsito dos trens que iam e viam do recôncavo

Aquelas locomotivas assumiam uma grandeza inimaginável na minha mente infantil, sinônimo de força, pujança e sonho de criança de domá-la.
Certo dia cheguei à estação onde ele chefiava e entre cuidados e mais cuidados em dado instante ousei lhe perguntar por que aqueles trilhos eram sempre retos. Ele, alto, circunspecto, me olhou de cima da sua altivez e não disse nada. Eu fiquei com aquela pergunta engasgada junto à fumaça que a locomotiva emanara ao mesmo tempo em que ela se deslocava lentamente rumo a Cachoeira/São Félix na Bahia.
Passados algum tempo na estação era hora de voltar pra casa. Ele então apanhou-me pelo braço e juntos descemos a plataforma e fomos andando lado a lado pisando as pedras, as madeiras, trilhos e dormentes. Em certo momento meu avô me mostrou trilhos soltos, empilhados, ao lado de grandes dormentes e pedras e pedras e pedras. Disse-me assim;
– Cada pedaço desse aqui é “colado” com esses dormentes, presos naquelas madeiras que ficam em cima das pedras.
-Mas Pai Júlio( era assim que o chamava), o trem não faz curva ?
-Sim, meu filho! As vezes faz curvas. O trilho é sempre assim, reto, mas o trem às vezes faz curvas!
Calou-se. Não fez mais considerações sobre a mecânica e cinética, posto que eu não compreenderia com a pequena idade que tinha. Apenas me apontava as frações de retas, os trilhos, que em dado momento da via fariam sutis curvas vida afora.
Cresci, entre pedras, dormentes e camadas e camadas de proteção que as dores da vida vão impondo, tal qual a largura de um tronco de uma árvore que sutil carrega preciosa seiva.
Hoje, ano após ano, entendi que qualquer locomotiva pode fazer curvas e curvas, sinuosas ou não. Sempre haverá o trilho, o firme dormente e a madeira, a sustentar sua trajetória sem que ele descarrilhe.
Assim é a ética, são os princípios, os valores.
Por maior que seja a inclinação da locomotiva em uma curva da vida, lá estarão valores, princípios e ética. O ponto final dessa estrada pouco importa.
Vou seguindo passo a passo a linha do trem procurando aprender a lição que marcaram os meus pequeninos pés de criança!
Obrigado!
Wagner Bomfim
05/03/2023
Com este pequeno diálogo vi seu avô dirigir-se a vc e respondê-lo com toda a firmeza que sempre tinha !!
Ele procurava não sair do trilho, mesmo que tivesse curvas na sua caminhada !
Que lindo texto. Imagino a importância desse diálogo para você, que sempre foi observador.