O Programa Mais Médicos e a Reserva de Mercado

“A história se repete como farsa ou como tragédia”. Essa frase, dita por K. Marx e revisitada milhares de vezes ao longo de mais de um século, inevitavelmente serve para, mais uma vez, se contrapor ao discurso tendencioso manifesto na carta publicada pelo CFM sobre a reativação e renovação de uma política pública, o Programa Mais Médicos, bem sucedida que foi desde a seu lançamento há dez anos, durante o Governo Dilma Rousseff.

Mas precisamos contextualizar extraindo da manifestação pública a verdadeira motivação ali escondida tal como se evidenciou lá atrás em 2013. Podemos sumarizar nas vertentes educacionais, político-ideológica e a vertente econômica

No aspecto educacional, o Brasil ostenta um número elevado de escolas médicas, (é o segundo país do mundo, com 387 cursos de medicina) ofertando hoje uma proporção de 2,6 médicos por 1000 habitantes. A distribuição desses profissionais, contudo, é totalmente anárquica e desproporcional, considerando que somos um país de dimensões continentais e que apresenta inúmeros e grandes vazios assistenciais.

Um aspecto a analisar nessa vertente é que, sabemos, os currículos das escolas médicas são direcionados para a superespecialização que, obviamente, atende aos interesses do capital que explora o complexo economia/saúde. Enquanto outros países investem 80% da formação médica focada exclusivamente na prevenção, aqui no Brasil o estudante é instado desde o início do curso médico a construir sua formação para, fatalmente, abraçar uma especialização que atuará desconectado do contexto epidemiológico, usando todo o aparato tecnológico, farmacêutico e sua rede hospitalar buscando tratar essas doenças, distante, portanto de atender ao cidadão e o seu corpo, sua mente e sendo elemento fundamental no equilíbrio do espaço social adoentado em todos os seus matizes.

Outro aspecto importante é a vertente político ideológica, vez que os nossos Conselhos de Medicina são inteiramente ocupados por representantes conservadores e alinhados com um ideário de direita, que defendem uma economia de mercado e contrários à intervenção do estado em suas áreas básicas, nas quais se destaca a saúde pública. A lógica da saúde da população não deve ser olhada apenas no falacioso número absoluto de médicos, em torno de pouco mais de meio milhão com CRM ativo na atualidade, além da citada proporcionalidade médico/habitante, posto que esse dado se perde ao olhamos o modelo de saúde ofertado e o formato dos currículos dos cursos de medicina. A postura ideológica foi demarcada com a negação da ciência pelo CFM, que chegou a defender medicações sem qualquer efeito no combate ao Covid19, negando todos os protocolos emanados por sociedades cientificas do mundo inteiro e capitaneadas pela OMS. Tal comportamento anticientífico, que violentou a ciência ao se colocar contra a vacina, muito contribuiu para aumentar de forma significativa a mortalidade pela Covid 19 entre os brasileiros.  Esses negacionistas da ciência foram alinhados de um governo de extrema-direita responsável pelo dantesco quadro de 700 mil mortes que poderiam ser evitadas com prevenção e diretrizes cientificas de assistência à saúde.

A vertente econômica assume uma importância capital, pois, quanto mais escolas privadas, maior oferta de mão de obra cada vez mais precarizada a serviço de um complexo médico hospitalar. São médicos que, em dia com seu respectivo Conselho Regional, enfrentam um mercado competitivo e mal remunerado a despeito desses conselhos lhes cobrar valores exorbitantes sem, contudo, lhes proporcionar um trabalho que dignifique a profissão e que retribua à sociedade uma regulação e fiscalização eficiente da profissão médica.

Um aspecto de suma importância e que não se discute na manifestação do CFM é que tipo de saúde se deseja para a população. De um lado temos um governo, eleito democraticamente para, mais uma vez, minimizar os agravos dramáticos pela qual passa a saúde pública, com aumento da morbimortalidade materna e infantil, com o recrudescimento de doenças evitáveis por simples vacinação, com a piora das doenças infecciosas e degenerativas, que se encontram em franca ascensão, doenças essas que ao se tornarem crônicas acabam por ampliar as enormes filas para atendimentos de média e alta complexidade nos hospitais públicos, insuficientes que são para o pleno atendimento dentro do modelo de atenção à saúde que continua com caraterísticas meramente hospitalocêntrica.

Na outra ponta se encontra exatamente os grandes interessados do lucrativo complexo médico industrial de equipamentos, de uma indústria farmacêutica em sua maioria sem pesquisa alguma, que não desejam a quebra das patentes de medicamentos e outros componentes, bem como tudo faz para a inexistência das farmácias populares ao longo do país, sem falar dos espertos planos de saúde oligopolizados que escorcham a classe média, classe que obtusamente defendeu e ainda defende politicas restritivas após conviver com uma crise sanitária mundial e a privatização dos resquícios de serviços públicos do Estado brasileiro. Todo esse complexo trabalha com a lógica de um SUS ineficaz, pago ou inexistente, sem o funcionamento universal e igualitário para todos os cidadãos,  onde a porta de entrada principal do seu usuário é a Atenção Básica de saúde nos diversos postos e Unidades Básicas existentes Brasil afora, espaço esse de efetivo controle e marco da qualidade e modelo de saúde, onde se insere o Programa Mais Médicos.

Os emissários desses reais interesses mercantilistas são os vetustos senhores de jaleco branco, que já desfiaram o mesmo rosário de contas em 2013  quando desrespeitaram a missão internacional de saúde dos médicos cubanos aqui chegados, para suprir as vagas deixadas de lado pelos médicos brasileiros. Esses profissionais estrangeiros que foram responsáveis por inequívocas melhorias das condições de saúde da população ao atuar nos inúmeros recônditos do país já estão sendo previamente estigmatizados por uma nota pública do órgão de classe.

Os representantes do CFM são os mesmos de antes e agora mais opulentos, são os negacionistas de jaleco branco, que violentaram a ciência colocando-se contra a vacina para a Covid19 e que encastelados em suntuosos prédios ganham jetons milionários para pouco ou nada fazer sob o beneplácito do poder público a quem cabe fiscalizar.

A fala do CFM encontra ressonância apenas como Reserva de Mercado para o grande exército de mal remunerados profissionais médicos, que superlotam os grandes centros e que curiosamente deles não desejam sair, iludidos com as supostas melhores condições de trabalho ou mesmo da oferta de serviços existentes no modo de vida urbana e litorânea onde a população está distribuída. São trabalhadores especializados, porém sem uma clara visão de classe social. São oriundos em sua grande maioria da classe média igualmente despolitizada e estão a serviço do grande capital que encontrou na saúde mais uma fonte de lucro, ou seja, ganham com a doença do seu próprio povo.

Efetivamente não se formam mais médicos com uma visão humanística, com a necessária visão social e que previnam doenças, que mitigue sofrimentos e que ampare o ser humano em todas as fases da vida, fundamentos de um distante Juramento de Hipócrates.

Sem uma mudança desses currículos, sem uma diretriz governamental de modelo de saúde a ser seguido, sem uma consciência de classe social e o estabelecimento de políticas com foco nas necessidades da população, repetiremos os erros do passado revisitado de forma leviana e desconectada das necessidades populares expressa na manifestação  publicada pelo CFM. Justificativas como a realização do Exame Revalida ou a necessidade de uma carreira médica que propicie fixar o profissional no interior do país, de forma similar ao existente no judiciário, não devem ser obstáculos para a consecução do Programa Mais Médicos quando nos deparamos com o posicionamento falacioso do CFM contra uma política pública já demonstrada como vitoriosa.

A farsa e a tragédia já começaram, pois é certo que nenhum médico, oriundo dessa classe média, de “homens brancos e de bem” irá se interessar em atender em comunidades ribeirinhas, zonas suburbanas dos grandes centros e longe das supostas excelentes condições de trabalho e recursos tecnológicos propaladas pelos grandes defensores dessa Reserva de Mercado de Trabalho médico. A sociedade necessita de respostas para seus graves problemas sanitários. Não é com posturas amparadas em um reacionarismo político ideológico que deve uma autarquia, portanto sujeita ao controle da sociedade, se comportar para que avancemos nas melhorias sanitárias da população.Necessário se faz intervir nesses redutos do negacionismo ainda vigente,  que se tornaram por sua inação e cumplicidade algozes da população a quem deveria servir. Uma reserva de mercado trágica e farsesca apenas.

 

Wagner Bomfim

23/03/2023

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Marcia Maria Pedreira da Silveira
Marcia Maria Pedreira da Silveira
2 anos atrás

Perfeito.

Franklin Passos
Franklin Passos
2 anos atrás

Excelente e perspicaz análise. Os cidadãos de bem foram muito bem retratados. São aqueles contra a taxação de grandes fortunas que acham que serão eles os pagadores de impostos por serem “milionários”. E acreditam na “terra plana” por não compreenderem o fato de não escorregarmos na esfera terrestre…

Wagner
Wagner
2 anos atrás
Responder para  Franklin Passos

😂😂😂😂😂

Lorena
Lorena
2 anos atrás

Por “Mais médicos” assim, com pensamento livre, crítico em busca de uma medicina mais igualitária, com acessível a todas as regiões desse país. A contextualização do processo exercício da profissão, real necessidade do país está excelente.

Paulo Almeida
Paulo Almeida
2 anos atrás

Subscrevo o texto e acrescento que a lavagem de dinheiro de comerciantes e do agrobusiness fraudulentos ao financiarem ou melhor comprarem os diplomas dos filhos para no futuro alargarem as já apertadas filas dos médicos políticos empresários já descritos no texto.

Joselma
Joselma
2 anos atrás

Perfeita análise! Concordo com tudo que é descrito no texto

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Comentários

  1. Franklin Passos em Análise
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