Eu não vi nada disso, estava em Miami!

Hoje decidimos republicar esse texto, para que não esqueçamos dos anos de terror que foram a ditadura militar no Brasil, apoiada por uma camada retrógrada da classe média e “ abençoada” pela igreja católica entre os anos de  1964 até 1985.
Muitos brasileiros foram mortos, muitos foram torturados nos porões das criminosas forças armadas e dos órgãos de segurança da época. Outros “ amigos sumidos assim, pra nunca mais.”
Essas mesmas forças retrógradas aí estão, vivas, a exalar seu hálito podre nas bocas de lobo do capital financeiro, predatório, escravista, aliada a setores religiosos e a mesma classe média obtusa, empobrecendo e infelicitando o nosso povo.
Esse  texto, atemporal, mesclando a primeira, segunda e terceira pessoa, propõe a reflexão ao leitor e tem o condão de manter a nossa eterna indignação com o terror do fascismo.O novo acervo digital sobre a ditadura militar brasileira | Nexo Jornal

Eu não vi nada disso, estava em Miami.

A cadeira antiga de madeira de lei rangia sob aquele corpo cansado. No interior daquelas memórias que assomavam a mente, os coturnos estalavam pelas calçadas, na madrugada fria de um primeiro de abril de 1964.

Invadiram todos os sinais, instalaram uma mancha de sangue em todas as praças, luzes mortiças sob postes de onde se espreitavam pessoas e ideais, qual olhares de rapina para um derradeiro golpe.
Lágrimas escorriam nas faces perplexas por longos e assustados anos da juventude.
Eu, contudo, “não vi nada disso, estava em Miami.” 
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O corpo teimava em doer, por vezes pela falta de atividade física, outras pelo excesso dela, na tentativa de resgatar tantos anos vividos, às vezes desregrados, tantas vezes insones. Busca compensar, na escrita incerta, as emoções que espoucam qual milho sob o calor do fogo e…
O gás lacrimogêneo ardia nas entranhas do peito, à frente, o latir insistente dos cães e, ao lado, marchavam combatentes de outra arena, de nomes épicos, como Ulisses, Rômulo e outros tantos que aqueles olhos lacrimejados não deixavam claramente perceber.Ditadura militar: atualize as histórias que te contaram na | BrasilNos porões da Ditadura - Cartola Editora®️
Eu, contudo, “não vi nada disso, estava em Miami”.    
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A degeneração corpórea assombra o espelho que nega o veredito ansiado. O trabalho incessante é cada vez mais intenso, afastando a preguiça e a indolência tantas vezes decantada país afora. Faltam materiais básicos, acesso a tudo o quanto é necessário na saúde e…
O coração de estudante palpitava, e as eleições pleiteadas, depois negadas e por fim negociadas em bases antipopulares, venceram décadas de medo. Porém, séculos de atraso e desmandos persistiram na troca cínica de favores e corrupção. Eleições compradas, congressos de picaretas, sindicatos de antipelegos, fraudes em licitações, tudo na mesa da desfaçatez herdada de tantos séculos de impunidade e violência, ao gosto de canalhas da democracia nacional.
Eu, contudo, “não vi nada disso, estava em Miami.”
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O salário não dá, os juros a tudo toma. É tudo deles e nada é nosso. Quer correr por entre árvores, por entre canteiros de flores. Seivas derramadas, flores não há. Foram colhidas no jardim da juventude a despeito do coração de estudante insistir em cantar.
Mudaram de camisa, medraram o canto. Desfilam hoje engravatados por entre as páginas da política, da economia e da polícia, esta, cada vez mais temida pelo povo. Povo, cada vez mais, massacrado pela ausência do estado de direito.
Eu, contudo, “não vi nada disso, estava em Miami”.                                
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O rangido da cadeira fere o silêncio    que esses novos combatentes impõem, amordaçando todos com suas falas mansas e dissimuladas. Assiste-se ao desenrolar dos fatos dispersos no caldeirão do atraso social por onde transita o povo, ainda esmiuçando o lixo, cavoucando a esperança, deleitando-se com o luxo da televisão. A memória cada vez mais pregressa, o rangido das molas na cadeira de madeira de lei, cada vez mais presente, tudo se embotando, desbotando-se no branco do… Eu, contudo, “não vi nada disso, estava em Miami”.
Wagner Bomfim 

 

 

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Mary
Mary
2 anos atrás

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Lorena
Lorena
2 anos atrás

Em 2016, no dia seguinte ao impeachment, acordamos nesse fatídico dia tão bem narrado de 1964. A desmilitarização da política no Brasil é algo que precisa acontecer pra ontem. Dino tem um árduo trabalho e precisa mobilizar todos os grupos e qualquer apoio em favor disso é imprescindível.
Na tentativa do 08 de janeiro entrará pra história, “eu estava em orlando”.

Paulo
Paulo
2 anos atrás

Retrato e testemunho escrito que dita a triste e dura sorte do brasileiro. Quam diu ignavos?

Franklin Passos
Franklin Passos
2 anos atrás

“Ódio e nojo da ditadura!”

Wagner
Wagner
2 anos atrás
Responder para  Franklin Passos

Eles estão a espreita. Só o combate das ideias pode vencer o obscurantismo!

Neci Matos Soares
Neci Matos Soares
2 anos atrás

Ágora mudou as formas da construção da mesma perversidade, da opressão. A poderosa arma das redes na Internet levou e leva os alienados, produzidos pelo Sistema. a elegerem os seus próprios torturadores- vide a maioria dos membros do atual Congresso Brasileiro.

Wagner
Wagner
2 anos atrás
Responder para  Neci Matos Soares

😢

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Comentários

  1. Neci Soarea em Análise
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