Quando lhe perguntei como estava sua vida afetiva, sua sexualidade, Sandra (nome fictício) não titubeou e me disse que havia se enamorado por outro parceiro logo após o réveillon. Estava enamorada por outro homem em sua vida e que só continuaria com Renato (nome fictício) se eles se permitissem aquele modelo de relacionamento a três.
Esta é apenas uma parte da história de uma mulher que hoje na quinta a sexta década da vida, independente financeira e com literalmente o nariz em pé, se coloca num universo de expressão da afetividade e sexualidade plena no século XXI.
Muitos leitores por certo já se levantaram da cadeira, indignados, outros e outras, eriçadas diante dessa inusitada situação para os nossos padrões culturais, seguirão até o fim desse artigo de opinião.
Vivemos num pais extremamente puritano, conservador, e que não se permite aprofundar na ainda delicada capacidade de amar de muitas pessoas. Fazemos parte de uma sociedade culturalmente pautada numa construção romântica, pela prevalência desse modelo, de relacionamentos monogâmicos, que são prevalentes porquanto se encontram no ordenamento sócio jurídico há séculos. Impossível não adentrar no contexto econômico vinculando o casamento com o instituto da propriedade, esse que tem sido o modelo imposto pelo Estado e, sobretudo, pela maioria das religiões monoteístas, sobretudo as ocidentais. O imiscuir da Igreja com o Estado, parece-me, o ápice dessa transformação que os juristas chamam de contrato, estando pois o casamento envolto no simbolismo religioso estabelecendo-se portanto como uma instituição.
O cantor e compositor Raul Seixas, ícone do rock brasileiro, no auge da sua produção musical entre as décadas de 70 a 80, expôs em uma rica canção, Medo da Chuva, a discussão sobre o amor monogâmico ou a impossibilidade do amor infinito, aprisionado que se encontrava nas regras que a igreja católica, prevalente na época, impunha como condição para que duas pessoas fossem felizes ou literalmente se trancassem em sua casinha até que a morte os separasse. Seguem uns versos;
- “eu não posso entender tanta gente aceitando a mentira, de que os sonhos desfazem aquilo que o padre falou…Hoje eu sei que ninguém nesse mundo é feliz tendo amado uma vez “.
Estava posto nessa canção sua inquietude com o amor monogâmico, sua inadequação aos preceitos religiosos, agnóstico que era e, primeiramente, propunha desconstruir a ideia de apenas um único ou apenas um tipo de amor.
Quando voltamos o olhar sobre os relacionamentos na atualidade percebemos o quão volátil e rápidos tem sido os casamentos ou mesmo os seus preâmbulos, no passado longínquo (risos) se namorava, noivava, para depois contrair o casamento. Na velocidade das redes sociais hoje se vivem tórridas paixões, avassaladoras e capazes de loucuras como já citavam os filósofos, assim como também se vivência fragorosas decepções, para a alegria dos psiquiatras prescritores de drogas para tristeza. O modo de convivência e, portanto, de consumo, imposto pelo capitalismo também impacta(grifo nosso) na suposta obrigatoriedade de atender aos anseios de todos os deuses, seja o mercado de consumo de bens e serviços, a estética corporal e suas alienações, bem como aos padrões de comportamento altamente mutáveis nesse século XXI, onde os gêneros se conformam ou se moldam às profundas mudanças socioeconômico culturais.
Sigmund Freud, ao explorar a teoria das pulsões, e aqui não iremos discutir o aspecto empírico ou heurístico de sua teoria, largamente discutidos nas academias, mas sim passear ou inquirir a libido, tomada da teoria da afetividade, como expressão erótica das pulsões vinculadas aos instintos primários, à união sexual entre os diferentes sexos.
A expressão do chamado amor e sua representação sexual tem efetivamente sofrido mudanças substanciais, podendo representar ou responder à manifestação da libido, do objeto sexual, o ego, como queiram interpretar, estando cada vez mais desgarrada dos elementos repressores, dos recalques, do superego.
A capacidade de amar mais de uma pessoa, objetos de desejo, pode ser determinada por padrões de formação desde a infância. Importa não confundir essa possibilidade, poliamor, com poligamia, poliginia ou poliandria, como uma instituição sem um regramento ético entre seus membros, nem que determinadas práticas possibilitem um universo de conflitos entre seus partícipes.
Na atualidade, onde o recrudescimento de valores e expressões de uma sociedade conservadora embasadas na falaciosa tradição, família e propriedade retira, sobretudo das mulheres, o empoderamento e liberdade conquistada sobre seus corpos, condição que vem crescendo desde a segunda metade do século XX até os dias atuais. O fundamentalismo, tanto cristão quanto de outras religiões, acaba limitando, fazendo com que essa possibilidade amorosa múltipla seja ” concedida” apenas ao homem nos países muçulmanos, porem amplamente condenada em nosso meio, sobretudo do ponto de vista jurídico.
Michel Foucault ao versar sobre a sexualidade na vigência do contexto econômico, no âmbito do capitalismo, nos informa que esse tem sido um período de onde vem acontecendo uma maior expressão do sexo e da liberalidade, como nunca aconteceu em séculos passados. Fala-se e consome-se mais sexo nestes tempos que em todos os milênios como se observa na indústria da pornografia por exemplo. Óbvio que a decadência da igreja ou das religiões muito tem contribuído para esse crescimento e liberalidade (novamente grifo nosso). A inserção da mulher no modo de produção capitalista determina uma mudança de comportamentos que deságua em possibilidades iguais entre os sexos.
Entretanto, mais importante que o poliamor, poliginia ou poliandria, são os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres no nosso meio, ainda à mercê de um regramento jurídico e social sob o manto do fundamentalismo religioso e atrasado culturalmente, condição em que o corpo acaba sendo propriedade do Estado e, portanto, a serviço de acumulação da propriedade. Amar a dois, a três, ao próximo e a si própria é muito maior que recalques!
“Amor é divino, amor é cristão. Sexo é animal, sexo é pagão “. (1)
” Qualquer maneira de amor vale a pena” (2)
Boa reflexão!
Wagner Bomfim
01/04/2023
1- Rita Lee ( Amor e sexo)
2- Milton Nascimento (Paula e Bebeto)
Maravilhosa e necessária reflexão
Uauuui… Arrasou Dr Wagner!!! Eu ameii perfeito!.
Perfeito, texto belissimo.. Amor é conceito amplo, e cada pessoa deve ter a liberdade, autonomia sobre a forma (ou plural, rs) de como vivê-lo. Nesse sentido, as mulheres ainda estão em desvantagem. Parabéns a “Sandra” pela sua capacidade de se posicionar de maneira firma na sociedade.
O amor é versátil, o ciúme, não!