O dia primeiro
Acordei com a luz na janela
Entre esfomeado e enojado do mundo
Literalmente nu
Como chegado ao mundo
Contorcendo-me ante poucas
cartilagens
Argutos olhos a confrontar a luz.
Desfeito os desejos,
Já não há padeiros a passar com bicicletas e sonhos
a adoçar o dia com suas buzinas .
Não há leiteiros insones a esquecer o leite derramado aos dias cinzas ,
Sobre o chão frio do parapeito, sem jeito.
Acordei. Estava nu e o mundo silente à minha volta
Moucos ouvidos, até os pássaros quedaram seu trinado
Lembro de um canto, rouco e compassado, na madrugada morredoura
Qual o coração dos traídos.
Ora, o silêncio borbulha aqui dentro
Ora, o cão me avisa de um intruso.
E estava nu, a descoberto de todos pecados
Como espécime inaugural desse mundo
inventado pelo Deus homem – ou homem deus
Sem qualquer jardim
e os pés a me olhar em busca de um destino.
Cada músculo açoitava o trabalho
Cada estômago zombava do aziago banquete
Mas estava nu
e displicente aos políticos,
esses tão iguais às salamandras de fogo,
insuspeitas.
Quantos dias eu nasci
Assim tão igual e tão único
Tão atoa. Sabe-se lá, tão incerta a vida
Não havia o mundo e a censura da luz,
aqui dentro,
lá fora.
Estava nu e era o dia primeiro
Como esse será o último
E os roncos das máquinas continuarão a ferir todas as verdades, inúteis
E os corações dos amantes terão sobressaltos, inúteis
E as igrejas, as mesquitas e os templos fundamentalistas,
quedarão um por um
Sob o fogo dos seus infernos, inúteis!
Pois eu estava nu
E a pele trazia comichões qual o fardo enorme que arrastava o cavalo,
Mudos escravos
A arrastar-se tristemente,
A olhar-me entre resignado e equino!
E o cão, lá fora, ladrando insistentemente,
avisando, ladrando…
Tanto eu insisto junto à luz
Que ora vai, luz que nunca vem
E a alma traga um ópio e
sedento de nada se levanta
Nu,
frente a vida nua,
existente!
Wagner Bomfim
30/04/2023
Belo! Parabéns, poeta!