O menino sobe lentamente a inclinação da rua após o antigo ponto de transporte Marajó que deságua num grande largo, em festa, sob as bençãos de Padre Ovídio. Jogos em barracas de parque, comidas em quermesse de novenário, gente aos montes e a Igreja Matriz de Santana totalmente iluminada, refletida em seus olhos.
Entre fanfarras no Coreto da Igreja Matriz ele sec delicia com um algodão-doce, com pipocas de cor em meio a um gelado guaraná da Frateli Vitta. Tem ali um ponto de encontro certo, para não se perder no emaranhado de pessoas que iam e viam. O som grave da tuba e do trombone vibra aos ouvidos e desperta o vaqueiro com sua indumentária de couro iluminando o espaço à frente.
Aos poucos suas pernas se alongam, se alongam mais que os oitizeiros, estes alheios às“ lacerdinhas” lacrimejantes e aos olhos que descortinam inteiramente a Rua Direita. A Escola Normal a esquerda se ergue imponente e tantos outros casarões, em típico estilo português rural, espaços da pequena burguesia comercial e rural falam uma língua que ele não ouve, sente.
As Filarmônicas dos ricos, dos médios e dos pobres passam silenciosas, já não fazem dobrados nem marchinhas compassadas em carnavais antigos. Desbotam-se aqui e ali, escoram-se umas às outras nas platibandas da história.
Para trás ficaram os índios Paiaiás, ficaram os quilombolas açoitados, ficara o soar dos tambores no tempo;
“ Tenho um tambor no peito
Tenho um tambor no peito
Tenho um tambor no peito...” dizia o coração aflito de Aloísio Souza, autodenominado depois de Aloísio Resende, negro que versejou por aqui o canto nagô/ gêge.
Mas os tambores estão mudos, o coração está paralisado aos ouvidos do menino, como mudo também está, la atrás , O Cine Santana. O rufar de tambores dos “Escravos do Oriente “reverberam junto a batida do “Ali Babá e os Quarenta Ladrões”, cada vez menos tambores, cada vez mais ladrões nos espaços da vida.
À frente, só o Abrigo Predileto, que assiste a outro menino de oito anos tocar uma sinfonia contando apenas com um bandolim. É chamado de Armandinho, futuro doutor da UFBa, virtuose das cordas e da cultura baiana.
A Praça da Bandeira, tomada por comícios, bandeiras com foices, martelos, vassouras e espadas desafiando as noites, que antecediam as feiras, doces de leite com sorvete e um malandro requeijão no mercado municipal. A praça que ouve o político dizer,
– “Enquanto houver um homem do povo, haverá sempre um grito de liberdade”, a praça que exerce seu papel de pêndulo entre as ruas à direita e a rua dos ricos e seus passeios altos.
Diante de si está o menino com fome. O corpo se alonga, com uma rua no meio, a Rua do Meio! Ele não vê Sales Barbosa versejar
“ Toda a tardinha ao portão…” a
“ conversa de namoro…” Vê apenas, cegamente, as saias plissadas saídas da Escola Normal, com suas sianinhas e suas anáguas de Can Can feitas na Le Biscuit esvoaçarem ao vento na Praça do Lambe Lambe. E elas fazem monóculos para ofertar a lúdicos eleitos em poses nem sempre pudicas. As imagens desnudam-se docemente junto ao pão doce da Padaria da Fé, pouco antes da fé, ainda pagã. Elas tomam banho de lua sob a luz do dia, sob o olhar do menino. Elas rodopiam sob o aroma dos cafés que inundam a Praça, que borbulha o chão da rua ao meio.
A rua é longa e os passeios altos da avenida Sr. dos Passos são apenas a distância para outras imagens, telescópicos cines, Santanópolis, Íris e logo após o Madri e a Rádio Cultura.
Mas a prosa e a poesia logo acaba, ali, sem o Margarida Ribeiro, sem Le goûter, sem Luciano, Naron e Olney. O cinema estancou a fita, a palavra foi amordaçada sob o peso dos “anos de chumbo”.
Godofredo Filho verseja ao seu tempo as ladeiras da Bahia, Eurico ecoa ao longe versos de O Vaqueiro, mas o menino não vê o aboio, o lamento, a oração!
Um jovem poeta cantarola sutilmente
“ O homem da rua fica só por teimosia
Não encontra companhia
Mas pra casa não vai não
Em casa a moda já mudou
que a moda muda
A moda é triste, a moda é muda
Que vem lá da televisão…”
“A sua gente está aprendendo inutilmente
Um batuque diferente que vem lá da televisão”.
O cinema fechado, o teatro sob olhares de rapina. Uma nova moda toma conta das noites e dias da cidade princesa.
O menino vê a fonte luminosa de Chico Pinto soterrada pelo arbítrio, vislumbra avenidas que se abrem para uma imensidão. Vê os trilhos das locomotivas desaparecerem pouco a pouco sob as noites frias do recôncavo e semiarido.
O menino olha ao redor e não vê as Filarmônicas 25 de Março, a Vitória, a Euterpe. Vê o Tênis Clube, o Clube Cajueiro, a Euterpe Feirense e a mesma segregação dos espaços. Vê Aloísio Resende, Sales Barbosa, Godofredo e Eurico. Vê eugenismo, vê Paiaiás sumidos, quilombolas segregados, vê a pele escura, fator de segregação, reservatório apenas de vaqueiros e assemelhados em milenar segregação.
O menino homem vê a urbe transmutar-se ao fim dos anos sessenta. Seus espaços pouco a pouco vão ruindo e seus signos representados em placas, ruas e instituições assumem paulatinamente o tom mortiço de velhas fotografias, longe do imaginário popular.
Outros olhos surgem, olhares se multiplicam, continuam a ver seus espaços, sua gente e sua cultura!
Wagner Bomfim
22/09/2023

O tempo anda corrido e a gente nunca tem tempo pras coisas prazerosas. É um exercício constante de adiar o que relaxa, o que acalma, o que encanta. “Quando tiver tempo vou fazer um monte de coisas que não rende dividendos palpáveis, ou que rende aquilo que não tem peso, nem gosto, nem é visível. O tal dolce far niente é uma utopia que se afasta a cada movimento nosso”. Mas, eis que sou obrigado a ficar na sala de espera do EMEC aguardando a sorte de poder visitar minha irmã na UTI. Minha mãe subiu com uma sobrinha e, protocolarmente, apenas duas pessoas podem visitar a paciente. Paciência. O que fazer? Nessa hora o celular, esse companheiro imprescindível da contemporaneidade nos oferece possibilidades acidentais insondáveis. Abreviando esse périplo, um sinal vindo da caixinha digital me oferece uma ótima oportunidade de vencer esse tempo de preocupação e tédio de maneira muito agradável. Pronto, cheguei na crônica de Wagner que me transportou para um tempo concomitantemente vivido por mim também, dado que temos as mesma idade, fomos colegas de escola e, agora sei, compartilhamos de sensibilidade ao observar as manifestações culturais daquele tempo que, em tese havia esquecido, mas que se revelam vívidas e, portanto, importantes na minha formação social, humanitária e, por que não dizer, da sensibilidade artística de que somos moldados. Pausa. Olho ao redor o mesmo porteiro que barrou a minha entrada continua lá, impávido em seu correto ofício de aplicar as regras sanitárias. Outro olho na bateria do celular e percebo que logo, logo essa caixinha poderosa vai tornar-se inútil ante a falta de energia. Antes de ser cancelado, agradeço ao amigo Wagner pela generosidade do texto e do envio. Valeu, meu bróder. Agora volto a atenção à minha irmã que certamente gostaria de me ver, vindo de longe para lhe dizer o quanto ela é importante para todos os seus irmãos, mãe, sobrinhos, amigos…
🤜🏾🤛🏽❤️🙏
Uma viagem no tempo, full lá
neste texto tão bem escrito, permeado de emoções.
Grande abraço
❤️🥰😘😘😘
Que belíssima homenagem..
À medida da leitura, pude visualizar fotografias na minha mente de uma princesa do sertão provinciana e tão gostosa. Saudade de um tempo que não vi e não vivi.
Emocionante.