Um Lençol nada Freático

O lençol nada freático

Essa crônica não pode ser séria, não tem como ser séria. Por certo pode cair no âmbito do absurdo, como volta e meia só acontece na Bahia, mas, aconteceu que ia passando pelo centro de Feira de Santana, lugar onde calango tá sofrendo de insolação, sob um calor infernal de 39 graus na sombra, acabei entrando numa lanchonete e pedi uma garrafa de água mineral.

O balconista, ostentando uma farda alaranjada já meio ensebada lhe escondendo uma proeminente barriga, colocou a garrafa e um copo americano no balcão a minha frente. No momento que fui levar o copo com água à boca, juro, mas juro por todos os santos  que ouvi o seguinte e prolongado diálogo:

— E aí Coli? Qual é a boa? Por onde anda véi?

— Olá, meu broder! Tô de boa, numas bocadas por aí que nem te conto,  respondeu Coli, assim conhecido pelos íntimos.

— E você Sal? Qual é as parada brodi?

— Rolando numa ou enrolando uma? Ah, ah, ah, ah!

Coli estava todo efusivo, como que saltitante,  Sal entretanto estava mais para ressaca, naquele padrão de fim de festa de ano novo, com restos de bolo e empada já azedando sobre a mesa, um enfado só.

Sei lá, Coli, tava tudo bem comigo e Shigella, numa boa que só. Um dia eu estava ativo, chegando junto, invadindo umas ribanceira cheia de fedentina e daí pulava para um rango, de um desavisado qualquer, no outro dia era ela, fogosa, a atacar barrigas alheias, mas, de repente, bem no meio do verão ela sumiu sem deixar nenhuma marca ali na Policlínica da Queimadinha.  Num sei se por conta das denúncias de fraude por lá das falsas cooperativas envolvendo o eterno prefeito Zé. Sei não!

Coli olhou o companheiro de tantas batalhas com ar pesaroso, meio de lado e balançando o corpo, repetiu;

— Hum, sei não, sei não!

Escherichia Coli, nome verdadeiro do amigo, não era dado a muita enrolação, a mentiras. Quando saía de uma bocada, já entrava noutra “fedendo” e ia dando o que falar. Dando? lá ele !

Morava lá para as bandas do conjunto Iguatemi, num córrego gostoso, gostoso, cheio de ligações com águas domésticas, aquilo era um deleite só. Depois que aquele córrego foi mexido pelo epidemiologista alcaide, ou melhor , pelo prefeito sonolento, aquele que não soube diferençar epidemia de Covid com pandemia por Covid, aí foi que ele se deu bem. Encontrou naqueles dias uma gostosa chamada Yersínia, toda, toda… deixa para  lá .

Pasmem, foi veranear até na recém inaugurada Lagoa Grande, aquela lagoa rodeada de jacarés dorminhocos.

— Olhe Sal, diminutivo de Salmonela, quero dizer que essa sua Shigella foi vista por aí com um tal de Proteus Mirabilis, um cara todo compenetrado. Dizem até que é de fino trato, um lorde, com andança em outras paradas. Dona Divisa nem sabe que passeava lá para as bandas do nascedouro do Rio Subaé, lá no Conjunto Luís Eduardo Magalhães. Tem más línguas que diz que ele é chegado ao trato  genitourinário, e aí amigo, manda ver.

-Fosse eu, cara. Chegava junto! -Colé mermão, vai fundo!

— Falaram por lá que era o que faltava para gente tomar conta do lençol. Olhe  bem, eu falei lençol, de lençol freático! Não fique aí pensano besteira não. Não  leve para o outro lado.

— Vai ver esse sumiço de Shigella pode ser só uma estratégia política dela, de ocupar aquela bacia e botar para “arrombare” proliferando por aí, até a gente chegar em Santo Amaro da Bahia encharcado de cobre e as porra!

— Mas Coli, a gente tava aqui na boa, boiando nesse lodinho aqui da Avenida do Canal de Feira de Santana.

-Vinha dando umas e outras furunfadas com ela, desde o Conjunto Milton Gomes e do Conjunto Zé Falcão. A gente ia até passar a virada de ano( eu disse ano) no setenta lá pela E.T.A.(estação de tratamento de água ) e …

Coli interrompeu Sal e com uma boa gargalhada e falou:

— Tratamento de água, Sal?

  • Como é que mermão ! Me conte outra! Hahaha!

— Negócio seguinte Sal, se oriente rapá!

-A porra desses lençol tá tudo dominado! Subaé, Noratinho, Jacuipe, Pojuca e as porra! A moçada do brilho e da fumaça ( pó, maconha, coisa chata ficar  se explicando)  lá do Iguatemi e da Lagoa Grande já falou; nem que dona Embasa quisesse ter espaço aqui. Só pagando!

-Eles tem compromisso com gente da pesada, farda e paletó preto. E tu sabe o preço né? Politico tirando foto, prometendo transformar  nosso pedaço em riozinhos da “ zoropa”, coisa pra gringo ver! -Oxe! Cruz credo! Sai pra lá!

— Corre logo atrás de Shigella, se intoca em uma bocada qualquer, brodi, pois com esses Zé Coubé que tá aí, sei não,

— Se tu vacila, vem esse tal de Proteus qualquer e crau!

Comi mexeu o quadril para frente e para trás, deu uma risadinha de lado e saracoteando falou:

-Fui!

Sal coçava a cabeça,doída. Parecia  um pouco tonto, pálido e desidratado. Balbuciava coisas meio estranhas. Balbuciava que Shigella estava  num lodinho lá pelas bandas da Baraúna e  rebolava cantando  uma música do tipo

-“em cima, embaixo, em cima, embaixo”

Ai, ai, ai. “Em cima, embaixo, em cima, embaixo”!

— Tá tudo bem moço? Quer mais alguma coisa? Perguntou o balconista !

Sim, sim! E digo mais:Calango bom é calango no lajedo !

Onde é que fica mesmo o Hospital Lopes Rodrigues?

 

Wagner Bomfim

06/01/2024

P.S.

E. coli, Salmonella, Yersinia, Proteus -enterobacterias responsáveis  por inúmeras infecções do intestino, bexiga, etc.

Lençol freático- reservatório de água existente no subsolo que dá origem a riachos, rios e mananciais hídricos vitais para a flora e fauna.

Hospital Lopes Rodrigues – unidade de saúde especializada em psiquiatria.

Consultar o dicionário do baianês e a oralidade do baiano.

Qualquer  semelhança com pessoas, lugares ou outros fatos é mera coincidência.

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Paulo F Almeida
Paulo F Almeida
1 ano atrás

Muito bom. Na verdade, foi no âmago da questão utilizando uma linguagem humorística e técnica muito bem escolhida na bacteriologia para expressar a realidade dos corpos hídricos críticos de Feira de Santana. Valeu campeão.

Wagner
Wagner
1 ano atrás
Responder para  Paulo F Almeida

Obrigado pelos ensinamentos, meu mestre!

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Comentários

  1. Franklin Passos em Análise
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