Um mural nordestino.
— Há os que duvidam do fantástico, outros que assombram com a realidade.
Feira de Santana é uma cidade de clima quente durante o dia, de tardes e noites amenas pelo soprar do vento oeste, distando pouco mais de 80 km do mar.
Cidade intimamente vinculada ao ciclo de expansão da pecuária bovina no interior do país a partir do século XVI e XVII veio a se impor como o maior entroncamento rodoviário do norte e nordeste na década de 60 do século passado.
O ano de 1967 marca a entrega de sua estação rodoviária, construção que ao lado de uma grande avenida, assomava o horizonte entre cruzando destinos que se iam e vinham de todas as direções, de todas as partes do país, através de suas rodovias então asfaltadas. Firmava-se como um entreposto comercial relevante, guardando, contudo, em meio à multiplicidade de origens e gostos, suas raízes, sua cultura centrada, sobretudo no homem do semiárido.
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Cismou em viajar de ônibus de Feira de Santana para Salvador. Chegando aquela construção limitada em dois pavimentos, subiu rapidamente as escadas para o andar superior, na direção onde ficavam os guichês das empresas de transportes interurbanos.
Após adquirir o bilhete do ônibus que o levaria à capital, caminhou lentamente para sentar-se numa cadeira próxima. Olhou ao redor, se apercebeu que os guichês eram outros, já não era a antiga Viação São Paulo ou a Viação Santana. Já não eram bancos de madeira maciça, envernizados, enfileirados uns frente aos outros, destacados pelo reflexo de raios que se chocavam num grande mural de ladrilhos a ocupar todo o andar superior da rodoviária, defronte a um restaurante. À sua frente, entretanto, residia e resistia um grande mural ladrilhado. Tinham uns 120 metros quadrados, nele desfilavam personagens representando o povo nordestino, mostras de uma cultura passada de gerações a gerações, impregnada de suor, do cheiro de estrume dos pastos bovinos, de estradas empoeiradas, cheiro de sangue de suas inúmeras lutas por liberdade, de espinhos em sua marcha diária.
Sentiu que sua visão turvava gradualmente, uma dimensão se abria e o tornava passageiro no espaço x tempo de tantas vidas. Estava ali ante Lampião e cangaceiros, entre Maria Bonita, sob o encalço das polícias dos antigos coronéis do sertão. Em meio a saraivadas de tiros de espingardas e ao reluzir de brilhosos facões cortando as carnes dos opressores do povo, ele viajava e viajava e viajava.
No mural haviam registros impressos soberbos, quais bandeiras, causos inconclusos passados de boca em boca, como flâmulas tremulando em torno de tênues fogueiras, papéis esmaecidos pelo sol inclemente sobre barbantes de quitandas e de quermesses, cordéis de desavenças e tragédias a lhe embalar naquele súbito torpor.
Rasgos de consciência, turbidez de águas de rios, de lajedos e de cacimbas embotadas. Cada ladrilho do mural era um vai e vem no tempo. Ficou a se perguntar. Quem teria feito tão bela obra, retratando a criação em rupestres desenhos magicamente coloridos? Quem nominou o passado ressequido na memória? Como definir o presente desse povo sequioso de vida, incrustado por acúleos gravatás em pleno portal do sertão? Quem lança a semente incerta do futuro? Assim se perguntava absorto!
— “Quem planta tâmaras não colhe tâmaras”.
Tal qual esse ditado árabe, ele passeava os olhos num túnel do tempo. Vaqueiro insuspeito a cavalgar solitário, em busca de bois mandingueiros numa sexta-feira 13. Cavalgava sobre campinas, entre juremas, jurubebas e juás, dentro de sua armadura, com seu traje mouro de gala, seu chapéu de couro e seu berrante de chifres de boi. Um aboio melancólico entoava uma oração do fim dos tempos em languidas tardes do sertão, assim se ouvia. Seus alforjes desafiando a fome, a lonjura, a seca. Um heroico personagem de ninguém, a professar uma oração moura consentida pelo gado errante.
Os ladrilhos, como o sol, lhe castigava os olhos cansados. Talvez estivesse ébrio de Sedutoras cachaças, a ver reluzentes princesas, ciganas esmeraldinas e Índia dos lábios de mel que encantava seus sonhos.
Alguém escrevera num ladrilho, próximo ao chão em que pisava ao lado, nomes de estranhos personagens, provindos de araucárias desconhecidas, forasteiros, para sempre baianos, de alma nordestina decantada. Lênio Braga, artista plástico paranaense e Udo Knoff, o ceramista alemão, não erraram seus caminhos. São Cristóvão lhes guiara até ali, às terras de Maria Quitéria. Por ali passaram, por ali inscreveu em planos ladrilhos uma enorme xilogravura, um legado, uma marca indelével da sofrida história do povo nordestino.
Os pensamentos, como as paixões, rodopiavam sua cabeça. Já não havia controle da própria razão e um medo inconfesso tomou-lhe o corpo. Assustado, via um bicho de enormes asas, de cauda espinhosa, bicho horrendo, soprando fogo pelas ventas, a tomar corpo e vida. Um bicho sobrevoava suas noites de um agosto frio. Era o “Bicho do Tomba” alardeado por toda redondeza, que desviava o curso de tantos destinos, de tantos amores, incertos. O sobrenatural Bicho do Tomba que tomava as ruas do longínquo bairro passeava por ora sobre ruas vazias, sobre silenciosas madrugadas, contidas, entre gozos, choros e dores, sob o som de cascos em um chão de pedras. Voava, diziam uns, envoltos no medo.
Outros medos, porem, ainda lhe ocupava a mente. Num outro mural, não retratado nas paredes, mas incorporado na alma por uma longa e escura noite que durou 21 anos, imagens miasmáticas lhe assomavam o peito. Sobre uma capa escura de padre, uma farda verde oliva escondia um Capelão, assustador, bem perto. Era o Bicho que assombrava as ideias, censurava o livre pensar e passear. Eram assim os idos de 1967.
Havia, contudo, nas tardes úmidas da Feira de Santana, cheiros de milho e pamonha quando um canto assim os precedia.
— “olha a pamonha, olha a pamonhinha, quem fez foi Noratinha”.
Lá estava aquele homem a respirar do mesmo ar dos sonhos de infantes estudantes enfileirados, frente ao mural, olhos sequiosos de saber. Mas, que nada. Esse sentimento seria, em verdade, o efeito das cachaças citadas ou era o caulim das lendas da Índia Necy, a entorpecê-lo. Afastou-se dos ladrilhos, gradualmente caía em si, como os ladrilhos ausentes na parede, histórias se perdendo ante a ignomínia e desídia dos homens desse tempo.
Frente a São Pedro, ali retratado, ele parecia rezar, como a pedir por clemência, pedindo aos céus para preservar tão bela obra, magnífica representação da cultura popular nordestina.
Ao descer, por fim, em direção as escadas para o pavimento inferior onde um ônibus o esperava, pensou ter visto São Cristóvão abençoando sua viagem para outro tempo.
Wagner Bomfim
Que lindo.
Me lembrou o auto da compadecida, quando Ela intervém pelo cangaceiro durante o auto. E ali vai narrando a vida sofrida do nordestino.
Parabéns Wagner
Uma bela viagem.
Também fui adentrando no mural e lembrando que por tantas vezes admirei cada parte da obra, na Rodoviária de Feira de Santana. Meu pai me deu o nome da Índia deste mural, Neci, com i. Certamente, o tabelião no ato do registro de nascimento escreveu errado.
Minha mãe, na minha infância, me levou para conhecer o citado mural e com muito orgulho me mostrou a Índia Necy, que inspirou meu o pai a me dar o mesmo nome. Fui longe, revivendo muito de mim.
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