O Escravagista

O Escravagista 

 A porta do apartamento, um cubículo com uma janela voltada para uma rua movimentada, foi destruída por um raio catódico, deixando Geraldo estupefato. Ele deu poucos passos tentando se esconder no banheiro contíguo, mas um raio esverdeado foi disparado paralisando seu corpo por inteiro. Seus olhos saltavam, assustados, devido aos elevados níveis de adrenalina.

Alguns Erg 36, cyborg modelo padrão, ostentando uma faixa preta no braço direito com as letras gregas Pi e Zeta, representavam a Polícia Fascista do governo instaurado no início do século XXI, época em que se iniciou a morte das democracias no planeta Terra.

Geraldo era um cidadão, desculpem, um mero humano daquela sociedade, sem atividade laboral fixa, classificado como “aposentado por um sistema de contribuição mensal extraído de parte da mais-valia da sociedade de mercado livre”.

Passava os dias, segundo alguns, brincando como em um jardim de infância antigo, idiotamente em frente a um monitor fornecido pelo Androide Master Erg36, o grande líder gestor da NSA–Nova Sociedade Autônoma. Geraldo , agora paralisado, recebeu uma coleira metálica no pescoço que a cada movimento brusco, doses contínuas de raios catódicos eram desferidas na direção de seu tronco cerebral, deixando-o entorpecido e imóvel do pescoço para baixo. Foi colocado em uma estrutura rígida sob os pés e, comandado pelos Cyborg Erg36, voaram sob propulsão nuclear, desaparecendo no horizonte.

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 A Terra vivia um período conflituoso desde o rompimento de uma bolha imobiliária e financeira em 2008,  culminando com guerras híbridas iniciadas no sul global em 2013 e 2014. Pouco a pouco, diversos extremistas radicais de direita iniciaram a destruição do falho modelo de equilíbrio da sociedade de consumo, baseada na exploração de humanos. Progressivamente, os controladores das riquezas liberaram IA em todos os veículos de informação, chamados a época de jornais, tvs, sites de notícias e entretenimento, por eles controlada. Homens, mulheres, shivas e outras identidades de gênero da época passavam o dia sob o efeito de drogas. Elas eram veiculadas através de invisíveis sinais digitalizados pelos algoritmos e em vapores automatizados e presos nas redes aracnídeas de antigos smartphones. 

 Geraldo era um otário–desculpem, um instruído–que ganhava uma pequena ração de alimentos para repassar informações aos simpatizantes dos primitivos Partido Liberal e do Partido Policial. No entanto, a ração era pouca e ele precisava bater metas naquela sociedade performática de extremo cansaço. Por isso, saiu comprando antigos eletrodomésticos no mercado clandestino da época: lavadoras e secadoras de roupas, processadoras de alimentos e outras bugigangas. Com isso, produzia mais e mais sob o algoritmo da IA. Certo é que, com o surgimento dos CyborgErg32, todo o mundo foi automatizado, para quem podia pagar, é bem verdade!
A cada um dos equipamentos que adquiria, Geraldo lhes dava um nome, tentando distrair a atenção di Androide MasterErg36, fazendo-os passar por visitas humanas antigas quando comandava algo como:

— Juliana, lave minha roupa agora!

 — Balbina, esquente minha ração aí! 

Mas, como diziam no passado; “o sistema é bruto” e o atual, a Nova Sociedade Autônoma, bem pior, estava fiscalizando o otário, digo, o permissionário, a viver aquela altura num século XXI totalmente robotizado, automatizado.

Porém, ele agora voava para uma audiência junto ao Master Erg36 que definiria seu futuro, se é que o dito cujo ainda tinha futuro naquele governo fascista.

Ao longo do trajeto, Geraldo nutria esperança de que qualquer crime por ele cometido seria perdoado pelo sistema, pois, no passado haviam absolvido até o “genocida da pandemia de 20”, o Bozo, e por que ele não o seria? 

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 Master Erg36 era, o que no século XX chamariam de Androide, porém, com o desenvolvimento da inteligência artificial logo avançou de protótipos de robôs para seres que viriam a ocupar inúmeras funções, controlando rigidamente as instituições de um estado repressor e fascista. Seu aspecto exterior nada diferia dos humanos, excetuando algumas funções inerentes aos mesmos e obviamente embaraçadoras.

O mito, digo, o Androide MasterErg36 já dispunha de todo o relatório envolvendo o patriota Geraldo bem como outros processos seriam analisados e devidamente adequados à luz da sumária justiça da Nova Sociedade Autônoma-NSA.

Em poucos minutos os cyborg Erg36Pi-Zeta entraram na sala empurrando Geraldo por uma coleira de raios catódicos.

Ele pediu para sentar, o que foi negado. Ainda assim, insistente, perguntou: 

— MasterErg36, o que eu fiz? 

— Cale-se, não tens direito a falar. – Você é acusado de violação às normas cibernéticas da IA com exploração de nossos irmãos primitivos. 

— Sua desfaçatez explorando uma máquina de lavar a louça da sua imunda ração, nominada aqui de Balbina, além de extenuar uma lavadora e secadora de roupas sintéticas, por 15 anos, nominada aqui de Juliana é aviltante. De acordo com o CPF (Código de Processo Fascista) o senhor responderá em liberdade por esses crimes e será sentenciado a pena de ler a toda a coleção de livros do charlatão Olavo Carvalhal.

— Pelo hodiendo crime de abuso sexual humano, que o senhor vem praticando há 20 anos, mantendo em cárcere privado aquela boneca japonesa, nominada aqui de Melissa, o senhor será submetido à castração química pela ação de  um lisado genético antimulleriano.

Os olhos do MasterErg36 ficavam vermelhos a cada sentença proferida. Os controladores das bigtechs diziam que tal expressão era a incorporação dos  sentimentos mais nobres e adquiridos dos fascistas, no caso, o ódio puro!

— Todos esses crimes estão enquadrados como graves, cometidos contra os novos e os  antigos espécimes da NSA, piorado com o inafiançável de todos os crimes; a exploração de um idoso, um precursor do Air fry, uma torradeira de pães transgênicos, aqui nominado de Pafúncio. 

— Será condenado a reclusão perpétua na unidade prisional IURD pelos crimes de escravismo.

Hoje, dentro da prisão, Geraldo foi transformado em líder religioso das seitas cristãs. Passa o dia frente ao computador tentando mandar recado para os aposentados conhecidos a se livrarem das suas muambas. 

Geraldo patriotário, “sifu”.

 

 Tonico di Meucci 

 26/05/2024

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Cacilda Félix santos
Cacilda Félix santos
1 ano atrás

Cacilda

Cacilda Félix santos
Cacilda Félix santos
1 ano atrás

Tava demorando !

Wagner
Wagner
1 ano atrás
Responder para  Cacilda Félix santos

😂😂😂😂🥰😘

Lorena
Lorena
1 ano atrás

Que deliciosa miscelânea dos nossos dias atuais, passando por todos os temas, literalmente, rsrs.
Geraldo teve burnout.

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Comentários

  1. Franklin Passos em Análise
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