A traição anunciada

 A saída.

— Não me espere para jantar! Tenho um compromisso!
 — Compromisso? A essa hora? Vai se encontrar com quem?
— Com uma pessoa, você não conhece!
— Tch, tch, tá, você é que sabe!
 Armando deu um beijinho na testa de Margot que acedeu com um muxoxo e logo fez uma pergunta para saber o que se passava.
 — Como assim não vem jantar? Isso são horas de sair?
 Armando trajava uma calça jeans e uma camisa de algodão com mangas dobradas, sem qualquer vinco. Ao sair, deixou no ar o cheiro de um perfume com toques amadeirados e de tabaco ante o olhar estupefato de Margot.
 Diante da inusitada situação proporcionada pelo marido, ela sequer teve tempo para inquiri-lo.
 — Como assim vai sair? Esse sacana acabou de chegar da rua e já vai sair, disse a contragosto.
Armando tinha hábitos mais que caseiros. Não era dado a maiores vícios, sequer era um atleta de fim de semana. Entre o canteiro de obras onde exercia o ofício de Engenheiro e seu apartamento no bairro do Stiep, ele costumava parar numa delicatéssen da orla marítima para um solitário café de fim de tarde. Ali ficava em sua contemplação longeva diante do mar, mudo à sua vida inquestionada.
 Margot, por outro lado, percebia seu distanciamento do marido há tempos. Mulher ativa, determinada, queria encontrar mais atitude proveniente de Armando, resgatar o ímpeto que a rotina foi apagando ao longo do tempo. Armando sequer havia lhe feito um filho ao longo dos anos, portanto um homem seco, sem possibilidades de renovação.
Contudo, ela agora tinha diante de si um fato inusitado, vê-lo todo decidido, perfumado e alinhado para um compromisso no início da noite.
Tinha certeza de que esse encontro não era com nenhum mestre-de-obras das construções que ele costumava acompanhar. Inquieta, o coração lhe causava sentimentos de estranheza, portanto, decidiu tirar essa história a limpo.
 O encontro
 A tarde de primavera deixava correr uma brisa marinha e balançava as palhas dos coqueiros da orla. Armando estava sentado à mesa da dedicassem tomando seu cafezinho. Era hábito após aquela parada para um café, levar o pão fresco que Margot tanto gostava.
Distraído, estava, até que se apercebeu de vozes femininas à sua frente.
 — Pois é, amiga, tá difícil encontrar algo que preste!
— Quando não é imprestável, é imprestável!
Disse a outra, rindo.
 Ele, de soslaio, olhou as duas mulheres sentadas numa mesa quase à sua frente. Uma morena de estatura mediana, cabelos pretos, usando brincos prateados com uma fina corrente no pescoço, acabara de proferir aquela sentença sobre os homens. A outra mulher, aparentando ser loira, era mais alta, tinha os cabelos soltos sobre as costas quase nuas e um par de argolas douradas nas orelhas. Usavam trajes de academia de ginástica compondo o estilo, colados ao corpo, o que lhes fazia realçar as curvas e barrigas à mostra.
Enquanto ele tomava seu cafezinho, passeou os olhos à sua frente, o qual foi captado com certa malícia pelas duas mulheres.
Alguns minutos se passaram até que elas fizeram menção de sair. No momento em que se levantavam, a loira deixou escorregar uma chave de carro que acabou caindo próximo aos seus pés. Naquele instante, Armando despertou do seu transe e levou imediatamente a mão ao chão para apanhá-las. A fração de segundos que se seguiu foi o bastante para que ele se deparasse com um decote do top, de onde um par de seios lhe afrontava os olhos. Quase que seus corpos se esbarravam e ele batia a cabeça ao encontro do rosto da mulher no afã de apanhar as chaves.
— Obrigada, disse ela com um sorriso.
— De nada, disponha.
 Após esse fortuito e educado gesto, ele também se levantou, dirigindo-se igualmente ao caixa. Um cheiro de pão recém-saído do forno se misturava a um indistinto perfume oriundo do colo da loira à sua frente, o que fez Armando inspirar profundamente.
 — Gostoso, não é? Adoro esse pão daqui, disse ela sorrindo enquanto balançava os cabelos.
Aquele gesto revelava-se como provocação sedutora.
Armando estava inebriado de verdade por aquele perfume, mas recobrando o senso, ainda conseguiu falar:
 — Muito gostoso, uma delícia!
 O que se seguiu foi um cúmplice silêncio frente ao caixa e uma despedida com um breve olhar malicioso.
Chegando em casa, Armando manteve sua rotina de, logo após o jantar, passar horas frente à tela do computador. Naquele dia em especial, ficou mais que de costume.
 Suas noites incluíam um quase celibato, indesejado por ele e por Margot, que alimentavam uma distância não se sabia por quê.
O relógio de um andava para frente, entre turbulências e crises, o outro era tal qual Janus olhando o passado e, assim, a vida de Margot e do seco Armando, que não podia ter filhos, seguia seu curso.
 A vigília.
 — Mas se ele está pensando que vai sair assim, sem dar satisfação, está enganado!
 Margot era uma mulher forte e controladora ao extremo, a ponto de saber dos horários e com quem Armando se relacionava. Há tempos que havia providenciado um detetive para seguir os passos do marido. Não, não era como os detetives físicos do passado, pelo contrário, era um espião virtual instalado no próprio telefone do marido. Coisas da normatividade do século XXI.
Todo passo que ele dava Margot podia acompanhar em tempo real e, se ele sabia, pouco importava, pois agora estava rumando para um encontro previamente anunciado com uma mulher.
 Na mesma hora ela acionou o aplicativo do celular conectado com o numero do celular de Armando. Ela passou a assistir a cenas mais que virtuais. A realidade nua e crua a sua frente mostrava como Armando se portava naquele instante.
Começou um percurso que incluiu uma parada numa farmácia, seguido de uma parada na delicatessem onde costumava tomar seu café.
 Alguns minutos depois era possível identificar o carro de Armando seguindo o trajeto nas imediações do PHD da Av. Pinto de Aguiar sob os olhares estupefatos de Margot.
 Ela se corroía por dentro, misturando inúmeros sentimentos. Havia em seu âmago um misto de raiva, de despeito, com sua autoestima em jogo chacoalhando como gelo em liquidificador. Eram reflexões sobre o comportamento dos dois enquanto casal e suas carências afetivas e sexuais.
Tomada de surpresa, se apercebeu com ciúmes do homem que abandonara noites e noites na cama.
 Já passavam das doze horas da noite quando Armando chegou ao apartamento, silencioso, cheirando a sabonete de hotel. Margot, deitada na cama, fingia estar dormindo e assim permaneceu.
Pela manhã, antes que ela falasse qualquer coisa, ele lhe disse:
-sai com uma mulher ontem e não vou renunciar a viver.
Antes que ela ensaiasse uma discussão e derrubasse os pratos da mesa, Armando bateu a porta da sala e saiu para o trabalho.
Dias, semanas e meses se passaram. Ninguém mais viu Armando, com o olhar perdido na direção do mar frente à janela de onde ele costumava tomar seu cafezinho na delicatessem.
As tardes de primavera ficavam cada vez mais longas. Agora, o que se vê é uma Margot transformada. Está mudando completamente de guarda-roupa e, vez ou outra, saindo com amigas para inúmeros lugares. Nessas horas, vai captando olhares por onde passa e gerando torcicolos nos homens à sua volta. Até deixou de comer pão!
Armando, seco, qual Yerma*, morreu não se sabe como.
 Wagner Bomfim.
25/10/2024. *Yerma (Federico Garcia Lorca)

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Paulo F Almeida
Paulo F Almeida
6 meses atrás

Maravilha. Muito bom. Armando finalmente descobriu a vida.

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Comentários

  1. Franklin Passos em Análise
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