O muro alto.
I
Não aprendeu muita coisa na vida, uma delas foi o significado da palavra felicidade. Algumas vezes olhava num dicionário, numa antiga enciclopédia e ficava a imaginar o gosto, a cor de tão inefável lugar que uns chamavam felicidade. Não costumava falar de qualquer dor, de insônia ou mesmo de apertos no peito. A vida não lhe permitia tempo para divagar, para filosofar. Pobre, não filosofa, dizia. Pobre perambula, vagueia pelas nuvens somente quando está de barriga cheia, tão rara estadia, entre um trabalho e outro, sempre pesado. A sensação que ele descrevia era mais parecida com um torpor, como uma transitória embriaguez da alma. Na infância, vez ou outra, vivia algo parecido. Na maioria do tempo, sempre que ouvia os roncos que a barriga fazia, uma eterna fome. No máximo, comia mingau de café com farinha que às vezes lhe davam, nos intervalos da fome crônica. Às vezes, até dava sorte quando conseguia pular um muro alto e trepar em alguma goiabeira de algum quintal. Satisfeito, logo após, deitava a cabeça no chão sob uma sombra qualquer, dormia, dormia e sonhava com a felicidade. Assim, o tempo passava, assim foi passando no tempo sem lhe ensinar sobre o sabor da felicidade.
Os anos se passaram, até que ele aprendeu a contar. Contava só até dez. Tinha oito irmãos, a mãe sempre cansada, de pernas sempre inchadas e veias estufadas, não tinha dia, não tinha noite. O pai completava a conta dos dez juntando as duas pequeninas mãos. Seu pai chegava sempre à noite, trazendo no corpo um cheiro de oficina, de suor, de pão dormido. Às vezes, ele chegava e sequer o via. Algumas vezes, o pai lhe trazia uns passarinhos que caçava pelas matas por onde se embrenhava. A visão dos passarinhos mortos sequer lhe despertava pena. Eram bichos comendo outros bichos. A felicidade parecia ser medida pelo estômago e ali ficavam, mudos, parados, olhando as penas dos passarinhos, uma a uma, grudadas em suas mãos, em seus dedos pequenos. Não havia felicidade naquele instante.
O tempo passou e tantas outras fomes lhe tomaram o corpo, invadiram sua alma, alma muitas vezes febril, na inquieta busca pela felicidade. Certa feita, lhe disseram, até um certo tempo, que a imaginada estaria na prateleira do mercado, mas ele não a viu, não a encontrou. Noutro tempo, anunciaram que ela estaria logo depois de uma ponte ou atrás da montanha que se destacava ao seu horizonte. Tudo muito alto, como os muros da goiabeira, também inalcançáveis. Houve um tempo em que tentaram lhe convencer de que certos homens guardaram consigo o segredo da felicidade, estes lhe venderiam pelo preço da sua alma, incauta, pura ilusão.
Caminhou por íngremes caminhos por toda a juventude, sequiosa, bebendo em todas as fontes, desde as salobras, outras amargas, lábios ressequidos pelo tempo inclemente. Até que um dia, num tempo chuvoso, os irmãos se foram. O mundo era uma imensidão para suas caminhadas e ele parecia ter desaprendido a contar. Um a um os irmãos foram se escondendo na memória, cada vez mais embotada. Os amigos, então, cabiam na palma da mão e sequer conseguia segura-los, como uma goiaba qualquer, insossa.
A porta da casa onde José morava, tinha um batente e ele foi, pouco a pouco, colocando os pés para fora em direção à rua. Lentamente, o suor, as veias estufadas, o pão dormido ficaram para trás. O peito ostentava um vazio e a alma confusa imaginava o mundo. Quantos muros haveria de pular? Haveria goiabas do outro lado do muro? Assim se perguntava, assim tropeçava ao primeiro, segundo e ao terceiro batentes da porta. Não sabia que o mundo tinha batentes, não sabia que a felicidade estava depois da raladura na barriga vazia, de fome, do muro alto.
II
Um dia de abril, José entrou na repartição pública, lá conseguiu um trabalho. Ele só precisava contar. Contar gente, contar coisas, contar dinheiro. Era preciso ir além de oito irmãos, pai e mãe. José misturava tudo nos papéis que lhe obrigavam a contar, um, dois, três, centenas de inimagináveis números que não adentravam a sua alma fugidia. Não ficou ali por muito tempo, para espanto de quem, autômato, já contava números há tempos. Recebeu uns trocados das mãos de um homem alto, vestido num paletó marinho e com uma apertada gravata no pescoço, sem suor na testa. O homem exalava um perfume estranho que reconheceu certa feita em uma casa de mulheres e homens solitários da noite. Recebeu aqueles trocados e seguiu caminho, com a mente repleta de letras e números que lhe embaraçavam a visão, entorpeciam a alma sonhadora.
José perambulou, perambulou e acabou descobrindo um lugar onde jorravam letras, números a rodo que se esparramavam pelo chão, aqueles números e letras lhe faziam esquecer a barriga roncando. Ali, numa biblioteca, ele permanecia ensurdecido e vagava naquele entorno dias e noites.
A mulher da biblioteca sorria, ela sempre sorria ao lhe ver frente às letras. Ela sempre lhe pedia ajuda, num enfado constante com aquele lugar, para saber onde estava um ou outro assunto e ele, solícito, ia em busca dos mundos, à procura das letras e dos números. Roía, uma a uma, as enciclopédias, os jornais com as páginas de falecimento, qual roedor noturno. José continuava alimentando a alma, a barriga, contudo, roncava sempre. Aquele prédio branco não tinha batentes, não havia muros à sua frente, só havia muros atrás do seu corpo magro, com fome.
Um dia comum e todos os dias eram comuns para José, ele ainda tinha espinhas no rosto, quando ouviu alguém dizer que a felicidade estava a alguns quilômetros de distância. Pensou: é hora de abraçá-la. De ímpeto, colocou uma camisa, uma calça e uma porção de sonhos num bocapiú de palha e saiu esbaforido, correndo em busca da felicidade, imaginada. Atrás, ficaram as contas aritméticas, ficou o suor, as pernas com as veias estufadas pedalando uma correia de máquina de costura. Ficaram os irmãos e amigos. Um a um foram, gradualmente, largados pelo mundo. Nunca mais José os viu, foram escapando por entre seus dedos pequenos. A felicidade sequer se anunciava no quilômetro seguinte.
III
Já era quase noite quando José chegou numa estação rodoviária. Havia gente estranha andando de um lado a outro de uma plataforma. Iam e vinham e, assim como ele, parecia sequer saber onde era o norte. José enfiou a mão no bolso da calça de sarja e contou o pouco dinheiro que tinha. Subiu o degrau do ônibus urbano, onde se lia à frente. Liberdade.
Gradualmente, os arranha-céus foram ficando distantes, casas simples como as que ele habitara se apresentavam aos seus olhos. Uma sensação fugaz de acolhimento, de calor humano, enchia o peito, mas era somente uma sensação fugaz e logo o motorista o olhou e disse secamente:
— Chegamos, aqui é o fim de linha!
José olhou ao redor, um frio lhe tomou o corpo, já não havia calor. Assim, permaneceu por longos minutos na poltrona até que o motorista manobrasse o ônibus, retornando em direção contrária. Naquele instante, não havia mais opção para ele, aquelas casas e seu calor humano eram apenas passado. José era somente um jovem do interior, ainda imberbe, perdido na cidade grande. O ônibus passou novamente pela rodoviária, dando-lhe um novo fôlego e esperança. A felicidade talvez estivesse próxima. Assim pensando, ele se deparou com um grande largo, cercado por grandes muros, inacessíveis. Goiabas talvez existissem do outro lado, mas, por certo, estariam verdes. Um cheiro de azeite de dendê lhe invadiu as narinas e uma dor funda na barriga se anunciava, a barriga roncava, ele tinha fome.
Eram pouco mais das sete da noite quando ele, timidamente, bateu à porta de uma casa simples. A rua inteira eram de casas de meia parede, teto baixo em diversas cores. Ao fim da ladeira, uma construção antiga se destacava e ostentava uma cruz no alto. Imaginou ser uma igreja. Ela pouco lhe dizia além de um impreciso sentimento de apatia, de temor ao Deus de Abraão. Uma porta de duas bandas e um sorriso amigável, porém, se abriram à sua frente.
— Entre, rapaz, disse-lhe uma senhora. Ela era de estatura baixa, corpo magro, de voz calorosa. O acolheu logo depois com um prato de sopa com pão. José sorveu com barulho aquela sopa. Parecia que nunca havia provado aquilo e sua barriga deixou de roncar. Passado algum tempo depois, lhe foi entregue um lençol e florido e um travesseiro para uma cama improvisada no corredor da casa. Aquela era uma passagem para pequenos cômodos que existiam no fundo da casa. José se deitava, a cama próxima à porta de entrada. O barulho de automóveis passando na avenida e os risos se misturavam, para além da madrugada. José, extenuado, conseguiu dormir.
IV
Foram poucos meses, uma eternidade, pareceu perdido por entre as ruas, transitando entre pessoas tão iguais, na fria cidade grande. O estômago roncava, a mente se confundia, a solidão invadia a alma, qual uma ameba a roubar-lhe a paz. As letras, os números, as goiabas, escorregavam pelos muros da cidade grande, o coração ferido sem encontrar a tal felicidade, tudo aquilo era somente uma grande alucinação. Os pensamentos embaralhavam na cabeça e José deu num monólogo constante. Certa manhã, apanhou o velho bocapiú e saiu a esmo. Andou quase uma légua até encontrar um casarão antigo, imponente, beirando uma encosta ensolarada, de frente para o mar. Um homem também magro e alto, com cheiro de sabonete, apareceu na porta da frente e, o recebendo, disse:
— Você ficará aqui! Apontou-lhe uma cama com colchão de espuma, encoberto por um tecido fino e encardido. Naquela hora, sete pares de olhos o fitavam, como se ali estivesse um bicho estranho, outro bicho a ocupar aquele território. Naquele lugar, José permaneceu por longos anos, imerso em todos os credos, envolto em vários pecados, disperso no nada e com os pensamentos a lhe atordoar a cabeça. Nada, contudo, o aproximava da felicidade.
Hoje, muitos anos depois, ainda relembra dos rangidos das chaves nos velhos armários, dos lastros de cama corroídos pelo tempo, suportando o peso dos corpos tão entorpecidos quanto o dele. Tudo aquilo parecia uma sinfonia dissonante junto ao som das barrigas dos bichos, elas roncavam tão alto quanto a dele, bem no meio da noite.
Em uma manhã de verão José descobriu um prédio enorme, paredes muito altas, muito além do que sua visão poderia alcançar. Em seu interior, homens e mulheres, todos brancos, todos vestidos em branco, o olhavam, inquisidores. Ele, um “fabiano qualquer”, de roupas coloridas, cabelos crescidos. Fitavam-no com um estranho olhar e sempre repetiam:
— Vista branco e você verá a felicidade. Caminhe junto aos homens de branco e você ganhará quilos de felicidade.
Noite e dia, José permanecia com os pensamentos chacoalhando contra o crânio, a alma embotada empalidecendo-o, branco.
José não teve escapatória, ficou aprisionado naquela construção enorme por longo tempo. Por vezes, ele pensava usar um remédio qualquer, anos a fio. Cada remédio que pensava ingerir o fazia lembrar do gosto ácido da goiaba nascitura. Até que, certo dia, desistiram de ter sua companhia, ele, por outro lado, desistiu também de ansiar pela felicidade. Seus olhos turvavam só de pensar nela, desde quando ainda era imberbe.
Um dia desejou somente andar a esmo, em qualquer lugar, aproveitar o silêncio, quase profundo, ter as folhas das goiabeiras estalando ao vento, ouvindo os próprios passos na areia. Hoje, os pés calejados parecem nem pisar no lajedo aquecido pelo sol da tarde. Seus pensamentos ruminantes lhe alçam além das pedras. Na cabeça inquieta, porem, ainda desfilam goiabas, muros altos e felicidade.
Wagner Bomfim.
30/03/2025.
Instigante, forte, humanamente cruel.
👏👏👏👏👏👏👏
Um “Fabiano qualquer” em busca de um bem que o mundo (sociedade) se recusa a lhe dar
Lindo, Wagner.