A Fiscalização
Nos tempos em que o pais tinha uma concorrência no setor bancário, típico de um sistema capitalista, o brasileiro comum dispunha dos chamados bancos sociais tipo Caixa Econômica Federal, Banco do Nordeste e Banco do Brasil. Nesses bancos existiam funcionários especializados em determinadas carteiras, que hoje são chamadas de “produtos”, formas escancaradas de extrair mais dinheiro do correntista,tipica do atual modelo neoliberal de relação com os pequenos clientes.
Pois numa certa agência do Banco do Brasil existia um servidor padrão, de paletó, camisa branca de tricoline e gravata preta, atrás de uma mesa de cerejeira cheia de papéis. Chamava-se José Lessa, homem alto, branco, cabelo partido de lado totalmente besuntado por brilhantina, que recebia a todos educadamente com seus respectivos inúmeros pedidos de financiamento para o setor agropecuário.
Lessa, como chamado, nasceu em bairro periférico da capital Salvador, precisamente lá no bairro do Uruguai, não entendia muito das agruras do homem do campo, sol, seca, dependência de chuvas para a produção e sobrevivência, mas como fazia parte da carreira de cada bancário passar por carteiras específicas, ele estava agora naquele posto e buscava conduzir com organização e zelo aquela empreitada. Lá estava ele, empertigado, suando às bicas no calor baiano, cumprindo zelosa e rotineiramente o seu expediente.
Certo dia, Lessa foi chamado na gerência geral. Sim, havia gerente geral nos bancos, posto máximo de cada agência. Nesse contato ele então recebeu a incumbência espinhosa de viajar para fazer uma fiscalização de rotina numa propriedade no interior, lá para as bandas de Iaçu, cidadezinha próxima a Itaberaba. O banco costumava enviar um servidor para verificar, nesses casos, a correta aplicação do recurso financiado e, obviamente, conferir a expectativa de retorno dos empréstimos no tempo certo.
Dia e hora marcados pra viagem para o interior, lá estava Lessa, empertigado em seus trajes formais, com sua pasta de couro, cheias de papéis e com sua inseparável agenda universal, em direção a cidade de Itaberaba.
Três horas depois de viagem apresentou-se no endereço constante nos seus papéis na cidade de Itaberaba.
Afrânio Correia era um fazendeiro de gado de corte na região, muito conhecido, falastrão e dado a negócios não muito honestos, segundo as más línguas que chacoalhavam pela praça, próxima à estação da empresa de águas e esgotos da cidade.
O fazendeiro Afrânio recebeu Lessa efusivamente em sua casa e adiantava a todo momento que o recurso obtido no banco tinha sido aplicado de forma correta no plantio de… tomates!
– Seu Lessa! Como vai? Que bons ventos lhe trás por aqui ?
– Como vai o Sr ? Vim fazer a fiscalização de rotina pra ver como está a aplicação dos recursos da carteira, disse Lessa, ajeitando o cabelo brilhantinado que caia sobre a testa suada!
– Mas nem precisava “Seu” Lessa! Tá tudo bem ! Pra quê se meter pelo meio do mato, cheio de gravatás, cansanção e até cascavel? E um calor da miséria desse! É muito trabalho por nada!
– Mas vamos tomar uma pinga da boa pra abrir o apetite e depois os empregados levam o senhor lá!
Lessa mantinha seu comportamento usual, nariz empinado, calado. Era homem de rotinas tão rígidas, mas tão rígidas que até o sexo com a esposa Liduína, tinha dia e hora marcados na agenda, portanto era imprescindível completar a fiscalização. O suor lhe fazia franzir a testa em meio às divagações do fazendeiro.
– A seca tem sido inclemente, a gente precisa de irrigação, blá, blá, blá …
Essas coisas do interior, da zona rural, certas espécies de gravatás e de cobra cascavel, Lessa só conhecia dos livros de ciências do seu longínquo ensino médio, ainda no Colégio Luís Tarquinio em Salvador .
Após o almoço, servido especialmente pra ele, Lessa se aboletou na boleia de uma camioneta empoeirada pra desespero da sua camisa de tricoline engomada. Estava acompanhado de dois funcionários da fazenda para finalmente embrenhar-se pela zona rural.
No trajeto , Lessa convivia com uma mecha de cabelo suada, “glostoramente” brilhantinada em meio à poeira avermelhada. Apos meia hora de balanço estancaram a camioneta num terreiro de chão batido, junto a um casebre e um largo curral de bois.
O funcionário do banco se rearranjou dos solavancos da estrada, de alguns mata burros do caminho e perguntou onde estava o plantio de tomates. Dito isso os funcionários se entreolharam, um pra o outro sem saber o que dizer e foram andando na frente. Um deles em certo momento disse;
– Cuidado aí, “Seu” moço, junto da cerca de gravatás!
Lessa já não suportava o calor da região, apertava sua pasta de couro junto ao tórax e se esgueirava sinuosamente entre capim, velames e alguns pés de cansanção quando, de repente, se ouviu um grito.
– Uma cobra, uma cobra. Ela me “mordeu “!
Os peões da propriedade acorreram rapidamente e perguntavam;
– Onde “ Seu” moço ? Onde ? Cadê ?
A essa altura Lessa já estava estendido no chão, apontando a perna “mordida”. Arfava, com a respiração ofegante, uma palidez no rosto e com os lábios descorados.
Rapidamente os funcionários colocaram aquele homem estendido na parte de trás da camionete e entre solavancos rumaram rápido em direção ao hospital municipal de Itaberaba.
– Corre gente, corre gente! Uma cobra mordeu o moço aqui.
Logo chegou um senhor de meia idade, vestido todo de branco. Era o Dr Bira, médico do hospital, que diante do anúncio de picada de cobra logo lhe rasgou a perna da calça e abrindo a camisa do desfalecido funcionário começou a examina-lo.
– Vocês viram a cobra, mataram a cascavel ?
Lessa ouvia surdamente aqueles diálogos. Pensava que era seu fim, logo naquele dia que ele havia programado pra fazer sexo com Liduina e ele ali numa maca de hospital, morrendo por picada de cobra , a serviço do banco.
O médico auscultava daqui, aferia a pressão acolá e subitamente parou o atendimento pra surpresa de todos. Ao lado do moribundo estava também aflito o fazendeiro Afrânio que balbuciava
– Vai que esse homem morre aqui, aí eu tô lascado!
O doutor olhou firmemente pra aquela platéia e selou o diagnóstico:
– É a primeira vez que eu vejo uma cascavel banguela e apontava um pequeno e isolado furo na perna direita de Lessa.
Depois dessa fala, Dr Bira saiu andando tranquilamente pelo corredor pra fumar um cigarro, pra assombro de todos que tomavam a frente do hospital.
Lessa foi trazido de camionete pra Feira de Santana ainda naquele dia, camisa de tricoline toda avermelhada de barro e uma grande mancha escura marcando a frente da calça de gabardine, rasgada numa perna. Uma mecha de cabelo preto se desfazia junto ao suor frio que lhe estampava a fronte. Era um fim de tarde de verão no semiárido baiano. Era a compostura da carteira agrícola do banco, largado na boléia de uma camioneta pela Rio -Bahia afora.
Depois desse insólito episódio sabe-se que a cultura de tomate irrigado nunca vingou na região de Itaberaba.
Quanto a Lessa, bem, saiu da carteira agrícola após emitir seu parecer final.
No presente, dizem, ele não consegue nem ver imagens de serpentes em revistas, pior mesmo quando se depara com qualquer víbora na televisão, chega a ter calafrios. Os colegas de banco juram que ele continua circunspecto, com sua pasta de couro e sua agenda universal. Nela, dizem, já demarcou os dias para manter relações sexuais com Liduína. Pra o resto do ano.
- Haja planejamento!
Wagner Bomfim
18/05/2022
P.S. 1- Qualquer semelhança com pessoas, fatos ou lugares terá sido mera coincidência.
2- Imagem de pintura de Marcio Panunzio
O que era o furo, afinal? Bala perdida?
Muito bom!!!
Sempre muito bom .
Parabéns !!!