As chagas de Lázaro

          Lázaro vaga pelas matas do Goiás qual bicho raivoso, despistando perseguidores, saltitando córregos e riachos, escondendo-se em locas e grutas bem conhecidas do cerrado.

          Um aparato policial composto por quase trezentos homens, dotados de helicópteros, drones para filmagens, cães farejadores e uma base logística com capacidade para enfrentamento de conflitos de grandes proporções. A despeito de tudo isso até então esse aparato não foi capaz de interromper a fuga do criminoso, conforme se tem notícias de testemunhas.

          Há dois mil anos, Lázaro perambulava pela Jerusalém (Lucas 16:19-31) à cata de migalhas dos alimentos de ricas mesas, conforme citado no Novo Testamento da Bíblia. Conta- se que sua mendicância gerava a aversão que os habitantes fariseus a ele destinava. Um outro Lázaro também foi descrito como aquele que teria ressuscitado por um milagre de Jesus Cristo, após quatro dias de sua morte. A um era destinado pedras de repúdio à sua condição miserável, ao outro contudo a retirada da pedra do sepulcro.

               Há uma profunda identificação entre o nosso Lázaro, elevado `a condição de anti-herói do sistema (os ricos, os fariseus de dois milênios atrás) e o leproso estigmatizado, doente e excluído. Em várias sociedades, desde imemoriais tempos, convivemos com a exclusão dos doentes além do necessário isolamento da doença transmissível.

          Durante a semana em que se empreende essa caçada ao bicho homem de Goiás, um jovem com suposta debilidade mental publica em uma rede social da internet alguns comentários supostamente favoráveis ao homicida em fuga, o Lázaro tupiniquim. Ato feito, a polícia do Estado do Maranhão rapidamente invade a casa desse jovem e, diante do avô de 90 anos, o abate com vários tiros.

          Tal qual o Lazaro bíblico, cristão, coberto pela chaga lepromatosa à espreita de migalhas das ricas mesas, destaca-se nesse Brasil varonil milhões de leprosos sociais à mercê de restos de comida da grande burguesia Guediana, ou de alimentos perecíveis e contaminados pelos glifosatos da ministra do agronegócio. Estes representantes da burguesia são os fariseus da atualidade, responsáveis por assassinar diariamente milhares de pessoas pelas consequências da contaminação de produtos agrícolas por esse herbicida amplamente usado no Brasil, porém proibido em diversas outras nações. Além do glifosato que a tudo que é comestível contamina, outros trezentos pesticidas agrícolas foram liberados no último ano, o que faz aumentar significativamente os números de mortes por câncer de várias naturezas bem como de outras doenças degenerativas.

          O Lázaro que vitimou algumas mortes em Goiás inscreve-se no imaginário social como um bandido atroz, e, em uma sociedade sequiosa de sangue deseja vê-lo abatido ao vivo em uma rede de televisão qualquer. Por outro lado, esse Lázaro se inscreve também como um anti-herói, por assim dizer, ao sistema social estabelecido. Quais são as causas de suas chagas? Qual doença atormenta o seu íntimo? Qual modelo de sociedade desejamos? Hoje algumas dessas chagas estão expostas. Suas mazelas de uma vida pregressa em cometimento de outros crimes, seu passado misterioso à luz da exclusão social, provavelmente vítima da perversidade secular da grande elite com a manutenção das desigualdades sociais.

          Bem próximo das grutas e riachos do cerrado, um outro lazarento, íntimo dos fariseus representados no planalto central, assiste e contribui para o morticínio de, até o momento, mais de meio milhão de vidas abatidas pela Covid 19.  Até o momento nenhuma pedra foi atirada na direção desse lazarento. Nenhuma das milhares de vidas ceifadas pela negligencia e omissão governamental poderá ser ressuscitada por qualquer iluminado do século 21!

          Resta por fim a pergunta: Onde está o criminoso? Onde estão os assassinos? 

Wagner Bomfim