O medo

 

O medo

                                 

Tinha o medo dos curupiras, dos Saci Pererê, das mulas sem cabeça

Disfarçava os dias num alheamento, numa falsa platitude de herói,

herói das histórias de quadrinhos.

Tem hoje um medo inconfesso

de um vilão que bate à porta.

Hoje é um vírus, amanhã será outro e mais outro e mais outro

e não haverá mais conchas para caramujos inseguros.

Talvez esse vírus não me atinja, penso.

Talvez passe por mim displicente, não se importe com a minha pequenez, com minha humanidade, com meu medo.

Medo de ver todas as mulheres secas,

outras com seus filhos absortos nas cacimbas, a pular cordas,

hoje açodados por partículas contaminantes.

Seus olhares, antes vivos, hoje sentenciam todos os crimes dos adultos.

Que importa sair, trabalhar, sair, trabalhar, sair?

O mundo não para!

O tempo não para, grita o poeta dissonante

Muitos sequer podem fazê-lo.

Ele, o inominado, se anunciou profetizando que não haveria mais amanhã,

Restaria apenas os minutos,

Os ponteiros das horas foram partidos, de medo.

Como hoje, só tenho medo.


Uma amiga me perguntou; por que não choramos tantos mortos anunciados e outros tantos escondidos nas lágrimas sepultadas?

Por que não nos emocionamos?

Calei-me. Como os olhos fixos das onças,

das preguiças

e tatus bolas

sobre o chão calcinado das queimadas,

pantanal sem lágrimas.

A resposta só as tem quem sofre, as perdas,

quem se vê invadido pelo luto.

Eu não as tenho.

O medo ocupa todas as minhas horas,

todas as minhas gavetas cheias de memórias,

memórias de tropeços, de caminhadas.

O medo se esconde nas frestas das portas,

nas minhas folhas de papel, em branco, ávidas por histórias que não sei se poderei contar.

Nas casas, as mulheres atônitas se ocupam,

isoladas,

desinfetando o ar,

e os pensamentos poluídos.

O pão, lá fora, apodrece de flavorizantes e fungos

sobre uma camada mista de pavor e precaução.

Os filhos, ah! os filhos, respiram um ar juvenil,

incerto, inseguro como as nuvens.

Varo as noites, insone, arrastando os pés pelos pedregulhos da alma,

pegadas imperceptíveis.

A esperança, essa invisível, vai se dissipando

com a batida das horas,

a rapidez dos minutos.

No escuro vejo homens caírem ao meu lado,

semblantes esquálidos, surdos, silentes.

O meu escudo, feito de palavras, desfaz-se ante essa arma mortal,

O coração sangra e o medo esconde a luz do sol.

Ele ronda a minha antes fortaleza.

Talvez não escute as batidas do meu coração e vá embora,

Aliem sorrateiro e frio.

Ele subjuga qualquer medo. O meu, contudo, sequer me protege.

Esse medo é o meu escafandro,

é minha roupa espacial, é o meu abjeto egoísmo.

Dele, por certo, prestarei contas um dia.

Hoje, ele, o medo, contaminou todos os parentes,

os amigos, os companheiros de luta

O campo está quase deserto.

Anseio o amanhã e que os primeiros raios de sol cheguem

a envolver esse medo num papel antigo de jornal.

Tintas disformes a manchar uma mão frágil,

mercadoria reles dispensada numa lixeira qualquer.

Uma manchete qualquer, de uma página qualquer.

 

Wagner Bomfim

02/10/2020

Foto: Medusa – Caravaggio ( Galeria Ufizi em 2016)

Ao companheiro Deo e a todas as vítimas da Covid19.

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Wagner
4 anos atrás

Triste ver tanto sofrimento por aí e a insensibilidade dos nossos gestores!

Unknown
4 anos atrás

Realmente,hj o medo nos toma com a incertezas dos dias seguinte.

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Comentários

  1. Neci Soarea em Análise
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