O mar e as pernas de Almerinda

          

           

         O mar era apenas uma miragem, era visto apenas como uma marca azul nas folhas pálidas dos livros escolares. Aquela imagem lhe inundava os olhos vivos como uma brisa, como uma lágrima contida, salgada. Algo inefável, que dominava os seus sonhos de interiorano.


          O Rio Jacuípe, caudaloso, separava as terras do recôncavo e do semi árido confrontando aquele corpo franzino de face ainda imberbe. Rio imponente, sendo desafiado continuamente em sua correnteza, caminhava soberbo, impertinente, certeiro, a caminho do mar. Ali se banhava, ali tentava atravessar em braçadas incertas de um lado a outro das margens, com o destemor irresponsável de seus poucos anos de infância.

         Um certo dia a escola havia divulgado no mural que o grupo escolar promoveria uma embaixada para os alunos, viagem relâmpago, num dia de domingo, para uma praia da Baía de Todos os Santos. Nenhum exercício de português ou matemática se sobrepunha àquela ansiada geografia reservada para um domingo primaveril colocando os adolescentes em permanente êxtase o resto da semana.


          Ele passou as noites que antecederam à viagem em um sono entrecortado, com oníricas ondas a desaguar em palpitações e poluções. Pensar que veria o mar pela primeira vez já era motivo de excitação de sobra, deixando, portanto, as tarefas escolares que ficaram amotinadas num canto da sala pra semana seguinte.

          Era um domingo de um setembro qualquer, enfim, quando os pés magros e inseguros pisaram as escadas do ônibus que os levariam de encontro ao mar. Cortaram a distância através de uma estrada de barro vermelho qual o furtivo fruto do araçá colhido pela janela do ônibus que transitando lentamente entre o sertão e o litoral da Baía de Todos os Santos só fazia aumentar a ânsia do mar.

          Em torno de pouco mais de uma hora de solavancos, um freio selou a parada e enfim estacionou numa enseada repleta de  grama e cheia de coqueiros pra êxtase de toda a garotada. Após as severas recomendações das professoras para não se afastarem e nem adentrarem no mar ela deu por fim o sinal para a garotada sair. Ele, antes de se lambuzar completamente com uma areia fina que invadia entre os dedos magros dos pés,  olhava firmemente aquele espelho azulado entrecortado por inúmeras estrelas faiscantes aos olhos.


          O mar e suas ondas pareciam anáguas bordadas que lambiam a areia branca da praia e que ao se chocarem suavemente sobre elas desprendiam um gosto salgado, nunca saboreado, sorvido incessantemente pela língua ressequida. O garoto franzino esbaldou-se, entremeado por queimaduras nas pernas e barriga causadas por águas-vivas e saltos mortais sobre as marolas que o convidava para mergulhos mais profundos.

          Lá estava ele, inteiramente despido de medos, criança, riso escancarado, sendo lambido pelas vestes da deusa das águas, até que em dado momento algo branco, se interpôs diante de si. Abriu firmemente os olhos e mergulhou entre aquele monumento em carne e osso onde suas mãos, pernas, roçaram sobre um corpo macio. A brincadeira, desapercebida talvez, não foi de todo recriminada e, logo, a meninada parecia um monte de piabas do “seu” Rio Jacuípe em busca de uma isca, um resquício de pão ou farinha.

          O sol, prestes a se por, deixava como saldo inúmeras queimaduras na pele, além das águas vivas pruriginosas tratadas com urina quente, mas ante um espirito vivo cujos olhos brilhavam intensamente.


          Os anos passaram, como as correntezas do Rio Jacuípe, ininterruptas, mas as lembranças da primeira vez que aquele moleque viu o mar ficaram marcadas junto aquela visão de pernas brancas diante dos seus olhos.

          Um certo dia alguém lhe dissera que a professora Almerinda esteve doente, talvez morta estivesse. Ele preferiu não saber. Seu coração descompassava, a antiga visão seria como um Colosso de Rodes que afundou no mar e que seus olhos nunca mais veriam. Decidiu não procurar aquela mestra das suas antigas aulas de geografia, seu coração, assim, lhe emanava boas lembranças.           As entranhas da rainha do mar eram agora a lembrança que ficara em seu íntimo, entre um gosto de água salgada na boca e das luzes estreladas refletidas naqueles olhos que perderam a infância, levadas pelas correntezas dos rios.

Hoje, por vezes, ainda sente uma brisa levemente salina passando sobre sua face, roçando levemente as pernas brancas e espumadas de seus sonhos.  

 

 Wagner Bomfim

 27/09/2020


          

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Neci Soares
4 anos atrás

Que Maravilha de texto, me fez retomar a minha viagem, já adolescente, quando pela primeira vez tive esse encontro.
Obrigada Wagner, seus textos nos leva adiante da mesmíssima que estamos inseridos.

Wagner
4 anos atrás

Obrigado pelo estímulo

Wagner
4 anos atrás

😘

Unknown
4 anos atrás

Escreve

Unknown
4 anos atrás

Vc escre muito bem! E uma leitura envolvente …

Claudia Ramos
4 anos atrás

Texto que nos brinda com a descrição viva desse personagem! Gratidão mestre !

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Comentários

  1. Neci Soarea em Análise
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