A Live da eleição
Era uma manhã fria e de chuva fina que dormitava as ruas estreitas e de chão batido da Vila Feliz, localidade esquecida do semi árido baiano longe de Feira de Santana, perto de Santa Bárbara.
As casinhas pequenas de janela e portas gradeadas ali estavam como que a acusar uma insegurança desmedida para a simplicidade do local. A cena remetia aos cadernos de desenho rabiscados na primeira infância, onde uma casa se destacava à frente de um morro verdejante ao fundo, algumas aves ciscando num terreiro e uns arbustos a compor o bucólico cenário.
O atrito de pneus de carro sobre seixos de pedras de repente fez esvoaçar algumas aves que bicavam algum alimento na terra úmida do terreiro. Assustadas, fugiram ante o ronco do motor de uma camionete 4 x 4 que parou a poucos metros da rodovia.
Isaac, negro forte, rosto vincado pelo sol e pelos fios de cabelo branco nas têmporas denunciando anos de vida assistia sentado numa cadeira branca de plástico aquela cena modorrenta bebendo um café numa caneca revestida de cerâmica, estambocada por tantas quedas, quando um senhor bem vestido bate palmas junto a porta se anunciando.
– Bom dia amigo. Sou assessor do deputado Pastor Geraldo Costeira, do Partido ANAL – Aliança Nacional Libertadora (uma versão moderna da antiga UDN) e ele me passou a incumbência de coletar nomes de pessoas influentes aqui na região pra concorrer às eleições municipais desse ano.
– Incu o quê moço? Infruente? Sô isso não!
– Como é o nome do senhor? Posso entrar pra gente conversar?
-Isaac moço!
Meio desconfiado com a visita inusitada, Isaac permitiu que o estranho adentrasse a pequena casa sem que antes pusesse a cabeça do lado de fora da porta, olhando pra os lados como a espera de surpresas nada agradáveis.
A casa tinha pouco mais de dois cômodos, um quarto estreito de onde se via uma cama de madeira com uma colcha de chitão florido desmanchando-se até próximo ao chão. Mais ao fundo um fogão a gás ao lado de um esboço de pia que acabava separando aquela que seria uma pequena cozinha de outra área onde se apinhava a mesa de madeira com cadeiras de ferro. Em cima da mesa um pequeno rádio. Lá atrás, uma porta se abria para os fundos da habitação simples e dois degraus de cimento separava a casa do fundo do quintal de onde se via o morro quase que adentrando aquele pequeno mundo. La fora junto ao batente da porta um cão se espreguiçava em busca de uma réstia de sol da manhã.
– Incumbência. O deputado me deu a tarefa de ver gente que possa se candidatar pra vereador pelo partido ANAL. E sabemos que o senhor é muito benquisto por essas bandas!
– Sei disso não moço. O sinhô é que tá “falano” isso!
– O negócio é o seguinte Seu Isaac. Nós identificamos que o senhor é pessoa muito querida aqui nas redondezas. É uma pessoa falante e poderia ser o nosso candidato a vereador fortalecendo o apoio ao deputado para as próximas eleições. O partido pode investir no senhor com recurso financeiro para fazer propaganda. Temos o apoio da Igreja Apostólica do Evangelho Circular que está apoiando o nosso Partido ANAL e, portanto, posso garantir que a eleição é certa.
Isaac de fato era um homem dado ao riso, mas daí vir a ser candidato a vereador em Santa Barbara tinha uma distância enorme. E o desconhecido continuava falando aos borbotões.
– Basta assinar aqui a sua ficha de filiação e arrumaremos tudo.
– Vamos fazer o seguinte; O deputado Pastor Costeira quer fazer até uma Live com os candidatos nesta eleição e o senhor iria aparecer.
– Fazer o quê? Misericórdia. “Sô” disso não. Olhe moço, num tô “intendeno” essa prosa não!
O tom mais firme fez com que lá fora o cão rosnasse meio ameaçador ante a voz de Isaac.
– Cala a boca Capacho! Era esse o nome do cachorro que apareceu no terreiro e que acabou sendo adotado anos atrás, perdido que estava à beira da estrada. Capacho ocupava uma elevação de cimento próximo ao batente da porta, dormitando sob uma réstia de sol.
Que é isso seu Isaac! É coisa de primeira. Não se preocupe. E desandou a falar ante os olhos estupefatos de um Isaac, que o assistia, nu da cintura pra cima, com uma calça de brim encardida trespassada pelo cinto de couro e com um facão embainhado. O personagem sequer tinha saído do século XX e já estava convidado a ser vereador pelo ANAL.
-A gente coloca aqui em cima dessa mesa um painel, como se fosse uma estante, ali uma plantinha pra enfeitar e o senhor vai conversar com outras pessoas e com o deputado que já tem tudinho articulado, conversando sobre as eleições. O senhor vai ficar famoso, vai até aparecer na televisão.
Aquela fala fez os olhos de Isaac brilharem de excitação. Aparecer na televisão lá na praça diante de todos seria coisa muito significativa. Quem sabe Maria Gamela não desse uma trela pra ele, pensou.
O radinho de Isaac mal conseguia sintonizar a emissora local quanto mais pensar em fazer Live e onde a tecnologia 4D por aqui ainda era ficção, mas Denirson, esse era o nome do assessor do deputado, o caçador de supostos talentos para os desvios de verbas do partido de Costeira prometia mundos e fundos.
– Fazer Live? O que é isso moço? E Isaac abria um sorriso meio desfalcado de algumas unidades dentarias.
-É só o senhor aceitar filiar-se ao nosso partido e vamos inscreve-lo pra disputa das eleições. A Live é pra convencer as pessoas a votar no senhor com o apoio do deputado Costeira.
Isaac já estava meio confuso com o linguajar rebuscado do cidadão quando o Denirson me sai com a seguinte fala.
– O senhor vai ficar aqui de frente pra câmera, aí as pessoas são convidadas e aí o deputado entra. Essa Live vai bombar! Não se preocupe que semana que vem virei aqui pra preparar tudo.
Despediu-se com promessa de retorno para fazer aquele desconhecido evento. A promessa de aparecer na televisão era pra Isaac algo extraordinário e a cabeça começava a divagar. Capacho levantava a cabeça vez em quando e rosnava meio contrariado com aquele cenário onírico de Isaac.
A semana seguinte foi de um burburinho em Vila Feliz, onde o assunto na quitanda era a visita surpresa de um representante do Partido ANAL e o seu novo afiliado, Isaac do Espirito Santo, para disputar as eleições pra Câmara de Vereadores de Santa Barbara.
Falava-se até de certas intimidades, tipo que Maria Gamela, da qual Isaac tinha umas quedas de asas, tinha estendido uma calçola lavada no varal da casa só pra ver Isaac na televisão no melhor estilo moderno de fake news.
Passados alguns dias, ouviu-se o barulho dos freios de uma camioneta quebrando o silêncio do dia com a chegada de Denirson, assessor do Deputado Pastor Geraldo Costeira em frente à casa de Isaac em Vila Feliz.
– Pronto seu Isaac, aqui estamos para fazer a nossa Live. Vamos nos arrumar. Dito isso começou a montar um cenário na sala da casa.
– Seu Isaac, antes assine esse papel aqui que é um recibo pra igreja e depois pode ir lá colocar sua melhor roupa enquanto preparo o cenário. Alguns minutos depois e Isaac surge com um sorriso aberto, papel na mão e vestindo uma camisa no melhor estilo “Volta ao Mundo” pra desagrado de Denirson que o queria de mangas compridas, gravata e paletó, bem no estilo da Igreja do Círculo Redondo.
-Precisamos “Seu” Isaac, de uma imagem de homem sério, temente a deus. Afinal, a igreja está financiando nossa campanha.
Isaac, homem dado ao riso já começava a se irritar com o assessor parlamentar. Lá dentro o que se via agora era um Isaac confuso e irritado com aquela insistência. Ele, que só queria usar a sua melhor roupa e aquele homem insistindo na mudança. Hoje então, quando tinha a esperança que Maria Gamela aceitasse seu convite pra tomar uma cerveja após o abate de um gado lá perto de Tanquinho.
– Onde já se viu? Eu aqui pronto pra receber Maria Gamela (ela era chegada a comer e vista por vezes comendo numa gamela) e tu me vem com essas “conversa”. Tá “pensano” o que?
– Mas seu Isaac, é uma coisa simples, todo mundo tá fazendo. O senhor vai sentir a penetração do negócio.
Quando Denirson disse isso aí o caldo entornou. Isaac saltou de lado e apanhando seu facão junto a cabeceira da cama, o desembainhou e apontando pra o assessor de deputado o empurrou porta afora da casa. Logo, o que se viu foi um homem bem vestido com a calça toda molhada, apanhando sorrateiro um papel rabiscado sobre a mesa e fugir esbaforido. Ouviu-se um ranger de pneus da caminhonete junto ao bater de asas de um galo que ciscava frente a casa. Capacho rosnava alerta, frente ao desaforo para com seu dono.
– Tá “pensano” que eu sô o quê? Alguma frutinha?
Dentro de casa um Isaac, sem riso, espumando de raiva com o desaforo. O mundo virtual parece ter perdido uma Live histórica e a Vila Feliz, escondida em algum canto do semiárido, perdeu a oportunidade de ter um representante na Câmara municipal vestido a caráter com uma camisa “volta ao mundo”.
Wagner Bomfim
11/09/2020
Nunca tente enganar as pessoas por mais simples que sejam
Este comentário foi removido pelo autor.
O texto nos faz viajar aos cenários descritos.
Excelente!!!
Aprendendo, aprendendo!
Parabéns, muito bom!