Ei, você, acorde!
Sim, é com você. Eu sei que você levantou dessa cama, dura, às 4, 5 horas da manhã pra apanhar aquele trem superlotado, aquele ônibus malcheiroso e quente, pra conseguir chegar a tempo no trabalho precário. Seu vizinho está lhe espreitando, à espera que você cochile pra te roubar a carteira, profissional, insegura.

Não, o que ouves não é apenas um grito isolado nesse seu sonho frágil. O grito que ouves, agora, ao lado tem a clareza do estampido da violência doméstica, vivida por aquela vizinha que certo dia lhe mostrou a mão, com os dedos cerrados, com os olhos mortiços, assustados. Esse grito é também o choro de uma criança violentada, marcada, sem infância. É o grito dos seres invisíveis que passam à sua frente, são milhões, de pele escura, marcadas a ferro e a fogo por longos séculos. Esse grito são estalidos e crepitações da fauna e da flora mortificadas da sua floresta encantada.

Ei, você, acorde! O sonho não acabou, eu sei. Seus inimigos tem milhões de soldados armados, desalmados e com ódio nos corações. Eles não hesitarão em apontar pra tua nuca, pra teu peito, um projétil qualquer, a lâmina de um punhal, mais fria que a longa madrugada em que você sonhou com um mundo de fraternidade e paz. “E agora José? E agora?”
Ei, acorde! Nunca lhe disse que a estrada seria curta e calma, que você descansaria sobre verdes campos e dormiria o sono dos justos. Pra seu governo, aviso, os ratos estão aí a empestar os esgotos, exalando seu hálito pestilento ao longo do seu caminho, essa é a verdade. Estão à espreita, pra lhe roer os pés se não os destruir, portanto…

Ei, acorde! Você tem uma cama por fazer, mas aquiete-se, saiba que nela não dormirá. Outros cairão, ali, cansados e haverão de sentir nessa cama um novo cheiro, flores de primaveras que você por certo não as alcançará.
Ei, você, acorde! Não temos tempo, “Minas não há mais”, passamos no tempo, gravamos os vincos na face , guardamos todas as dores nas mochilas.
Vai! Precisamos parir nossos sonhos!
Wagner Bomfim
31/10/2022
P.S. Homenagem aos 120 anos de Carlos Drummond de Andrade.