Ele entrou na quitanda e logo sentou num tamborete junto ao balcão de madeira encardido pelo tempo. Estevão Preto, dono da quitanda, tinha o hábito de esfregar insistentemente o balcão com uma flanela já escura e puída a agora escorava ali os cotovelos e uma barriga proeminente. Ganhava o sustento entre vender alguns secos e molhados, mas sobretudo lucrando com a venda de uma e outra dose de aguardente de cana, servida no balcão. Via a vida passar ao léu, tendo a companhia diuturna do som dos carros que cortavam a rodovia Rio-Bahia, lá pela Cabeça da Vaca, perto de Paiaiá.
Um cheiro acre de vinagre se misturava com o forte odor de um rolo de fumo de corda ao lado de Carlitinho, assim chamado devido sua baixa estatura, compondo aquele cenário de final de tarde, comum nas quitandas do interior da Bahia. Naquele momento disse:
– Bota uma pra mim aí!
Carlitinho demonstrava um certo ar de contrariedade enquanto Estevão, negro alto e meio barrigudo, de pronto abria a torneira de um barril de aguardente e lhe servia uma dose. Acostumado a dar boas risadas com as estórias de Carlitinho, descendente de índio da região de Paiaiá e morador do Adro, via-o, agora, com ar intrigado, com a fuça amarrada.
– E agora, que vai “sê “ da minha vida? Depois desse “ trabaio” todo que tive. Fui até Itapicuru plantar uma ruma de Ipê, ganhar uns trocado, pra mode botar uns dente e agora o governo me inventa umas novidade dessa!
Falava pra dentro, meio que resmungando. Uma fumaça de cigarro azulava o espaço meio saburrento do local onde dois trabalhadores rurais matavam o tempo a ouvir um programa de rádio de Feira de Santana. A região, que surgira como um distrito no início do século passado pertencia a Santo Estevão velho, chamada de Ado pelos antigos moradores era extremamente carente, com educação restrita ao grupo escolar fundamental, um posto de saúde com visita pontual de médicos após a saída de estrangeiros e sem acesso à internet. O rádio era a única via de informação local.
Mas Carlitinho, enigmático que estava naquele instante, desafiava os neurônios de Estevão Preto sem falar coisa com coisa. A noite já avançava e ele após tomar umas quatro doses da caninha começava a espumar pelo canto da boca a medida que falava.
– Imagina “Estevo”!. Agora que marquei com aquela gostosa da Jurema vem a porra do governo me ‘embarrerá”.” Destá “!
– Mas o que te “apurinha home”?
– Essa tal de “mascra” que o governo disse pra “colocá”. E eu “sô” algum bandido pra usar isso?
Ele, descendente de uma tribo guerreira , não poderia esmorecer diante de grave ofensa do estado da Bahia frente às tradições do povo kariri. Estevão Preto já acompanhava o discurso desconexo com uma dose da aguardente, com certo enfado sobre um balcão ensebado.
A noite deitava nas folhas lá fora um breve sereno quando Carlitinho saiu, cambaleante, pela estrada de chão batido em frente, jurando amor eterno a Jurema, mulher de rebolado provocante e motivo das intentonas e desvarios de tantos outros à beira da rodovia Rio Bahia. Assoviava uma musica, Babalu, cantada por uma antiga diva do rádio chamada Ângela Maria, cadenciada pela batida do chinelo de couro na sola dos pés castigados do trabalho.
A noite deitava nas folhas lá fora um breve sereno quando Carlitinho saiu, cambaleante, pela estrada de chão batido em frente, jurando amor eterno a Jurema, mulher de rebolado provocante e motivo das intentonas e desvarios de tantos outros à beira da rodovia Rio Bahia. Assoviava uma musica, Babalu, cantada por uma antiga diva do rádio chamada Ângela Maria, cadenciada pela batida do chinelo de couro na sola dos pés castigados do trabalho.
X X X
Estevão Preto despertou com umas batidas insistentes na porta de madeira. Assustado, reclamou lá de dentro que não era hora de abrir. Mas uma voz ora meio rouca ora esganiçada, invadia as frestas da porta.
– Sou eu, sou eu! Carlito.
E a remela ainda lhe cerrava os olhos quando abriu a parte superior da porta. O sol invadia a quitanda com os raios que despontavam longe e refletiam sobre a pele escura daquela proeminente barriga.
– O que é peste? “Qué que tu qué” essa hora?
Lá fora, contra a luz do sol Estevão Preto apenas vislumbrava o perfil de duas pessoas. Era Carlitinho, que ostentava inúmeras marcas pintadas no rosto e no tronco, sinalizando o rito de combate, típico da sua tribo Paiaiá. Na cintura, um facão ainda na bainha de couro cru, junto a uma máscara de proteção orofacial, que mais parecia um adorno para aquele instrumento.
-Agora tô pronto! Né assim que o governo quer? Pois bem!
Estevão olhava meio confuso, meio surpreso, pois pensara que Carlitinho sabia qual era o combate a que o governador havia convocado a população, ao qual ele estava resistente a participar.
A seu lado, Jurema debruçava um olhar orgástico sobre Carlitinho que ao se virar pra Estevão Preto expunha seus novos dentes incisivos, adquiridos no Programa Brasil Sorridente. Ele, índio descendente dos Paiaiás estava pronto para o combate, portando um sorriso recém inaugurado para deleite da gostosa Jurema. E todo valentão, ainda dizia;
– Ele que venha. Vou sair agora e se topar comigo eu estrepo ele todo! Fazia ao mesmo tempo um sinal de avanço e recuo de uma peixeira.
– Que é isso home? De quem tu tá com raiva?
– E tú não sabe? Desse infeliz que dizem tá “matano” todo mundo. Esse tal de Covid.
Estevão Preto coçava a cabeça, sem fala, ao tempo em que o índio Carlitinho e Jurema, dois descendentes dos Paiaiá do recôncavo baiano desciam o tabuleiro da Cabeça da Vaca, prontos para o desfile comemorativo à Independência da Bahia.
Era uma manhã de sol especial. Era manhã de um 2 de julho.
Estevão Preto coçava a cabeça, sem fala, ao tempo em que o índio Carlitinho e Jurema, dois descendentes dos Paiaiá do recôncavo baiano desciam o tabuleiro da Cabeça da Vaca, prontos para o desfile comemorativo à Independência da Bahia.
Era uma manhã de sol especial. Era manhã de um 2 de julho.
Wagner Bomfim
wbomfim55
Homenagem aos verdadeiros donos da terra brasilis no dia da Independência da Bahia – os nativos chamados indígenas.


Muito bem escrito e descrito! Parabéns, Wagner!
Bota uma e viva a Independência da Bahia.