A dor dos outros

Coronavírus: com cemitério superlotado, Manaus enterra vítimas em ...
Por que não nos indignamos com os mortos da pandemia Covid19?
ou o “ E daí” na cara do povo!
          Essa pergunta me persegue há dias após questionamento de uma amiga dado os números alarmantes de mortes que o Brasil ostenta no enfrentamento a pandemia pelo Covid19, ou diria melhor, na total confusão, incompetência e descaso governamental no cuidar do seu povo na luta contra o corona vírus.
          Por que não choramos tantos mortos anunciados e outros tantos escondidos nas subnotificações, nas lágrimas sepultadas, no amago de tantas famílias? Por que não nos emocionamos? É preciso antes significar o conceito, o processo de morrer, antes de tentar encontrar uma resposta plausível pra esta atroz realidade.
           Na idade média, a morte era vista de forma transbordante, indisciplinada, em meio a rituais onde predominavam a intimidade, as relações familiares e o riso. Os corpos dos mortos eram sepultados nas proximidades dos lares, seguindo uma lógica de contestação do poder dominante, o senhor feudal (Rodrigues, 1995).
           O subsequente período burguês impôs uma solenidade fechada, contida e individualizada das cerimonias. Esse aspecto expressa a assunção do capitalismo que, de forma metodológica, afastou tudo o que ele considerava imprestável ao seu processo de produção e acumulação de riqueza, como o lixo, os doentes de lepra, os tuberculosos, doentes mentais e os mortos do convívio  dos vivos e portanto dos corpos produtivos para bem longe do convívio  social. Todo esse processo se deu no contexto  do positivismo  cartesiano de Renê Descartes e depois com Isaac Newton, onde corpo e mente foram  definitivamente separados. Portanto, as doenças e a consequente improdutividade eram fonte de contágio tanto sanitário quanto cultural. Assim, adoecer passou a ser a incapacidade de produzir para o mundo social e incompatível com as necessidades do mundo da mais valia e o seu desfecho, a morte, obviamente não deveriam ser cultuados.      
             No mundo contemporâneo a sociedade lida com a doença e a morte numa lógica de contraposição, de tentativa de retardo ou cuidados diante da inexorável certeza pertinente a todo ser vivo. Enquanto os profissionais de saúde lidam com a doença e não com o doente e suas emoções, seus vínculos de amizades e afetos, tornando-se a um tempo poderosos senhores a desafiar a morte, o imponderável, expressam em verdade a sua impotência mesmo a custa de estupendos recursos tecnológicos para esse desfecho inevitável.      
          Nesse embate entre o morrer, a experiencia de morte do ser humano, do semelhante e o alheamento à sua vontade eles sofrem, revelam-se despreparados tal qual a própria sociedade que os empodera. O enfrentamento a esse evento natural independente do contexto histórico, religioso ou social, assume varias feições, sejam expressões de dor, sofrimento, respeito, equilíbrio e discrição nas diversas religiões ocidentais para descarrego da dor e da angustia da perda com ou sem manifestações efusivas, tais como ocorrem no México e na Itália por exemplo. Nos países do oriente as solenidades são marcadas pelo comedimento e discrição sem as manifestações efusivas e estéticas de significação das cerimonias  tais como ainda encontramos no interior brasileiro onde é usual “beber o morto” em memória daquele corpo velado. A maioria das religiões celebram a finitude do corpo e a transmutação da alma para outros níveis espirituais de forma similares mudando apenas o cerimonial.
           A resposta inicial, entendo, se insere no contexto social e político do momento, onde a necropolítica está assentada na própria estratégia e narrativa jornalística majoritária da grande imprensa intimamente ligada aos setores dominantes da sociedade escravagista brasileira. Ela, a mídia oficial apenas fulaniza os atores políticos e os mortos, sem efetivamente, nesse contexto da pandemia ofertar ao publico as reais causas dessa tragédia humanitária. As inúmeras mortes ocasionadas dia a dia pela violência policial e agora escondida pela Covid19 expõe a face nua e crua de um governo que se manifesta segregador até no ato de morrer do seu povo, ou parte considerável dele. Ao jogar inúmeros corpos em valas comuns, típicas dos pobres da idade média e moderna,  assim como ocorreu com os judeus dizimados pelo nazifascismo, esse governo eterniza a mudez desses corpos antes invisíveis, sem direitos, hoje equiparados ao lixo  descartável fabricado pela sociedade capitalista na sua expressão mais perversa, o neoliberalismo.
           O Covid 19 escancara muito além do contexto religioso que opera na cultura de cada povo. Ele impossibilita o exercício dos seus ritos funerários, do velório, do sepultamento e do luto, dado a frieza do morrer hospitalar ora acentuado pela fatal contaminação de amigos e familiares. Ou seja, sequer despedidas contritas e higiênicas do morrer do mundo contemporâneo são agora permitidas. O Covid19 expõe ainda mais a total impossibilidade de produção e, portanto, não permite que esses corpos doentes e mortos sejam visibilizados, para não alimentar a interrupção da roda da fortuna de poucas famílias que detém a quase totalidade do PIB nacional.
          Assistimos a esse processo de genocídio num alheamento e apatia, qual os profissionais de saúde vitimados pela percepção da sua impotência das situações da vida pessoal e social diante do doente e do morto num Burnout inconteste. Como não vivenciamos pessoalmente, ainda, o luto próximo, assimilamos diariamente dos telejornais pílulas do sofrer, comedidos, também impotentes, despossuídos, qual os pobres medievais, sem uma visão mais humana, hoje tão somente mecanicista, apenas como uma relação de produção terrena.
           Quando não nos indignarmos pelas absurdas mortes evitáveis pela pandemia e pelo extermínio de negros, minorias e pobres Brasil afora assimilamos a narrativa jornalística cúmplice, que alimenta uma necropolítica fascista e sua estratégia de manutenção do status quo sociais. Somos culturalmente e socialmente coniventes até que a dor nos atinja, até que necessitemos exercer uma atitude transformadora frente a esse permanente luto estampado em nossa cara pelo genocídio secular desse país.
 Foto: G1
Wagner Bomfim
07/06/2020
www.fotoegrafia.blog.br

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Wagner
4 anos atrás

Resistir sempre

Neci Soares
5 anos atrás

Quando se importa é um aprendizado, como descrito no seu claro é bem argumentado texto, estamos vivendo a desconstrução dos valores da vida, de maneira avassaladora, pelos dominantes do do capital.

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Comentários

  1. Profa Me Cintia Portugal em Sempre
  2. Marirone em Sempre
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