A calçada varrida

Esquivel passava sempre nos mesmos horários frente a casa amarela, muros baixos, numa rua do bairro do Uruguai. 

Era um exercício de paciência andar sobre a calçada, desviar-se de poças d’água e assistir aquela mulher de longos cabelos escuros varrer o chão do passeio causado pela  fuligem emanada da chaminé de uma fábrica de chocolates próxima.

Andava de sapatos pretos, lustrados, camisa branca de mangas longas e sempre escovado, dirigindo-se a uma agência de correios onde trabalhava no Comércio.

Era um costume trazido do interior, limpar a frente da casa, no caso em questão era acentuada pela necessidade de espantar a poeira deixada pela lama acumulada pelas chuvas frequentes, fazendo Marli repetir aquele ritual diário antes de ir trabalhar na fábrica da Fratelli Vita. 

Havia uma espécie de pacto entre eles. Esquivel era seu espectador solitário, aflito por vê-la, luminosa, toda manhã. Ela, sabedora do seu interesse, deixava para fazer aquele serviço às vésperas de sair para o trabalho. A cada dia um novo visual era usado por ela, naquela hora ostentava um tubinho de alças finas nos ombros, realçando o colo e o quadril. 

Um dia, Esquivel foi tomado de coragem e num ímpeto, sob desculpa de enfrentar uma poça d’água passou para a outra calçada, pisando no passeio onde  Marli delicadamente varria.

-Bom dia!

A voz grave ressoou ao redor gerando em Marli um inusitado calor pelo corpo.

— Bom dia!

Eles se olharam, seus corpos próximos. Um sorriso malicioso uniu aquele pacto e daí por diante o diálogo matinal foi se ampliando pouco a pouco. 

Eram conversas sobre o tempo, sobre a rua e o bairro.

— Absurdo, deixarem a rua nesse estado, dizia Esquivel. 

— Olhe, não sei não! O que fazem esses políticos? Ficamos aqui nesse estado!

Assim, esses breves contatos alimentavam os sonhos dele ao longo dos dias. Havia uma excitação em Marli na sedução construída a cada dia.

Até que Esquivel, enebriado pelo aroma de Patchouli que exalava  daquele colo,  a convidou para um cineminha no Largo de Roma. Daí para uma sessão de apertos e namoro pouco custou. Marli enrolava seus longos cabelos negros sobre os olhos de Esquivel, cego de paixão.

Desde então, Esquivel nutria um ciúme, a princípio tolerável, visto pela família como coisa do amor, ou como uns diziam, era puro zelo. Ao ouvir qualquer comentário, Marli jogava os cabelos sedosos e perfumados sobre ele, rindo, e logo tudo cessava. 

— Serei sempre sua, meu amor, dizia Marli.

Acabaram casando de papel passado e tudo. Algum tempo após o casamento já tinham um casal de filhos que crescia às suas vistas.

Porém, pouco a pouco, aquele ciúme de Esquivel foi sendo substituído por uma apatia. Às vezes ele a olhava distante, noutras vezes sem a paixão antes vivenciada à frente da casa amarela.

Marli, contudo, não descuidava da beleza. Passava horas a pentear os cabelos com inebriante carícia a desnudar-lhe a nuca, para deleite de Esquivel naqueles instantes que a olhava excitado.

Os filhos cresciam e ele para completar o orçamento tinha uma pequena barraca de praia, na península Itapagipana, debruçada sobre a Baía de Todos os Santos. Era comum que Marli fosse apanhá-lo final do dia a início da noite. Sua passagem pelo percurso gerava um frisson que desagradava Esquivel. Passou então a proibi-la de sair. 

Num desses dias, após arrumar o quiosque ele voltava para casa e ao se aproximar da casa amarela viu Marli conversando com um desconhecido. Logo, ao se aproximar, notou que o desconhecido se distanciava enquanto Marli entrava rápido para dentro de casa casa.

— Quem era aquele homem com quem você conversava a pouco? Tinha um tom grave e irritado.

— Não sei, o homem me pediu uma informação, respondeu Marli, sem dar mais assunto.

Esquivel ficou ruminando aquela cena o resto da noite, não conseguia dormir direito.

Via homens desfilando sobre o passeio da rua, frente a casa amarela. Eles acenavam para Marli e ela jogava seus longos cabelos ao vento exalando perfume de Patchouli, enquanto varria a calçada, sorrindo.

Noites e dias se passaram. Ele se consumia em ciúmes, resmungando pelos cantos, sob o olhar inquieto dos filhos menores. 

Porém, numa  manhã qualquer o bairro foi sacudido pela notícia que Marli fora encontrada, estendida no passeio da casa, morta, com um tiro no peito ao lado de uma na vassoura de piaçava. Muita gente acorria ao local. Esquivel, o marido, desaparecera por completo, não foi encontrado sequer pela família. 

Passados mais de trinta anos, morando num barraco no bairro da Fazenda Grande, Esquivel jura que Marli está viva. Que ele passa por ela todas as manhãs em direção ao trabalho e que ela joga os longos cabelos cheirando a Patchouli em sua direção.

 

Wagner Bomfim

15/09/2024

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  1. Franklin Passos em Análise
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