TROPEIRO

 Tropeiro

          Bato à tua porta, assim, bem de mansinho, como um velho tropeiro, sedento pela água fresca da cacimba, posta num pote de barro cozido que sei guardas lá no canto da sala.
          Só pra te lembrar, te digo que a sombra no oitão da casa já tem mais de dois palmos e uma prosa cai bem nessas tardes de verão, aquece o coração e vem refrigerar a alma.

         -Te lembras daquela queda do cajueiro?
         -Daquela em que teu corpo ficou salpicado de ferrões de abelha?
         -Pois é!
         -Nem assim soltavas da mão aquele caju amarelo, vistoso, mesmo diante do ardor intenso do veneno entranhado. Os olhos pareciam se importar mais com o gosto que com a falta de ar!
         -Pois é!
         

Ainda sentes, imagino, a agonia dos espinhos de uma cabeça de frade, nos pés de sola fina de criança. Agora aí estás, a procurar estilhaços de acúleos nas cicatrizes do corpo que a vida te deixou. Talvez nem te lembre das marcas, de quem as deixou. Hoje usas um gibão a proteger tuas mágoas, a esconder tuas marcas!

         -Lembra-te do rabo de um calango no meio de um cacho de côco? Isso mesmo, tu desceste tão rápido que te esfolou os pés e toda a barriga.Tinhas um temor de uma víbora qualquer, inexistente.
         -Lembro sim, como se fosse hoje!

          Te olho fundo e vejo que falas com um jeito sequioso, que a saliva aponta à tua boca, talvez pelo doce da água de coco fugidia, talvez pela sede da vida.

         – E a vaca malhada, hein? Ficou ali embaixo do umbuzeiro te esperando pra reagir pela tua provocação ao bezerro. 
          – Pois é! Ele cresceu, se foi, deixando rastros rebeldes no cascalho dos caminhos.
            Não percebemos que a sombra avança sutilmente além do oitão da casa , quase tocando o horizonte que te turva à vista cansada.
            Como viajante incerto e sem destino deixo resvalar no meu ouvido as palavras que compõem tua cantiga que soletras lentamente para mim.
           

Levanto, inda trôpego, e acolho teu calor no meu peito, assento o corpo trespassado de lembranças sobre um velho cavalo. Sigo meu caminho, solitário, sob um som remanescente na memória, saciado de tua água, fresca água adocicada de saudade.

Wagner Bomfim

Em homenagem ao Dia da Saudade (30/01)

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Unknown
3 anos atrás

Lindíssimo texto amei,parabéns Dr Wagner!.

Neci Soares
3 anos atrás

Parabéns Wagner!!

Unknown
3 anos atrás

Maravilhoso texto!Parabéns Dr Vagner.

POUCAS & BOAS - eduardo kruschewsky

Não foi sem motivo que lhe indiquei para a Academia Feirense de Letras…

Unknown
3 anos atrás

A força do espinho com a delicadeza da flor
Lindo

Unknown
3 anos atrás

Perfeito

Unknown
3 anos atrás

Como tudo que vc faz

Gustavo Morais
Gustavo Morais
3 anos atrás

Lindo!
Inundou-me de nostalgia.

Mussolini Lima
3 anos atrás

Excelente!

Marirone Lima
3 anos atrás

Lindo texto!!! Amei a metáfora do Gibão… vc é um artista das letras!! Parabéns!!

franklin passos
3 anos atrás

Parabéns pelo texto, meu amigo! Saudade é o alimento do amor eterno!

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Comentários

  1. Neci Soarea em Análise
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